Saturday, April 17, 2010

O estado é cúmplice


O caso do pedreiro que matou seis adolescentes após ser solto por "bom comportamento" evidencia o ruinoso colapso do sistema prisional brasileiro


Gustavo Ribeiro

Josemar Gonçalves
LIVRE PARA MATAR
Apesar das evidências de psicopatia, o pedreiro voltou às ruas
pelas mãos da Justiça

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O pedreiro baiano Ademar Jesus da Silva, de 40 anos, atirou num homem pelas costas, fugiu para o interior de Goiás, forjou uma nova identidade e, antes de ser capturado pela polícia há cinco anos, ainda teve tempo de molestar duas crianças. Preso por estupro, reduziu-se a apenas um entre os 470 000 internos que compõem a miserável massa humana dos cárceres brasileiros. Solto por apresentar "bom comportamento" e por ter cumprido um sexto de sua pena, revelou-se um psicopata. Saiu da penitenciária da Papuda às vésperas do Natal e, uma semana depois, voltou a estuprar crianças – só que, desta vez, não houve sobreviventes. Matou primeiro um adolescente de 13 anos. Nas semanas seguintes, agindo sempre com a mesma perfídia, ele atraía garotos a um matagal em Luziânia, a 70 quilômetros de Brasília, onde os violentava e, ato contínuo, assassinava-os a golpes de pau, martelo ou enxada. Há dez dias, a polícia finalmente conseguiu prender Ademar, que confessou os crimes. Os terríveis atos cometidos por ele destruíram seis famílias. Ao resto do país, confrontado com tal demonstração de ferocidade, sobrou somente a triste e necessária pergunta: não era possível ter evitado essa matança?

Como costuma acontecer numa tragédia dessa proporção, ninguém aceitou a responsabilidade pela dor que agora dilacera os familiares das vítimas. Sim, o pedreiro Ademar executou os adolescentes, e certamente agora pagará por isso, mas ele não estava sozinho naquele matagal. A terrível verdade moral é que estavam lá também as polícias da Bahia e de Goiás, que falharam em não prender o pedreiro quando ele cometeu outros crimes; estavam lá ainda os três psicólogos e a psiquiatra que avaliaram o estado mental de Ademar durante o processo de soltura e não descobriram que ele representava um perigo para as demais pessoas; e, por fim, o juiz do caso, que acabou por soltá-lo, apesar das evidências de que se tratava de um perigoso estuprador. Todos são agentes do estado e, embora possam ressaltar que cumpriam a lei, pressionados pela necessidade de esvaziar as desumanas prisões brasileiras, não hesitaram em assinar os papéis que devolveram o pedreiro à vida em sociedade. O caso do maníaco de Goiás traz à luz, portanto, o putrefato estado do sistema prisional do país – que acumula mais presos do que pode, isolando-os em cubículos fétidos, muitas vezes por mais tempo do que deveria, não os reeduca e, fosse isso pouco, solta muitos deles sem saber se têm condições de retornar ao convívio social.

O colapso desse sistema é tão absoluto que não há dados confiáveis sobre o assunto. Tanto o Ministério da Justiça quanto o Conselho Nacional de Justiça não dispõem de estatísticas sobre o número de presos beneficiados com o regime de progressão de pena – muito menos quantos desses internos foram soltos sem passar por uma avaliação psiquiátrica. Ou seja, não se sabe quantos Ademares em potencial circulam hoje pelas ruas do país. O problema certamente não está na possibilidade de redução da pena, mas na ausência de critérios objetivos para concedê-la. Desde 2003, o laudo criminológico, que serve justamente para isso, tornou-se facultativo: cada juiz decide se é ou não necessário fazê-lo, dependendo do caso. Quando o juiz exige o laudo, surge a segunda etapa do problema – as avaliações psicológicas são realizadas em apenas uma sessão. Foi o caso de Ademar. Diz o psiquiatra forense José Geraldo Taborda: "Não é tempo suficiente para dizer se o indivíduo é perigoso ou não. Em que grau? E, mais importante, ele representa uma inclinação para cometer que tipo de crime?".

A sucessão de erros se prolonga após a soltura do preso, quando, na prática, deixa de haver qualquer monitoramento. No caso de Ademar, a promotora Maria José Miranda até pediu uma "fiscalização sistemática", sem sucesso (veja a entrevista abaixo). Nos Estados Unidos, presos que recebem o direito de cumprir parte da sentença em liberdade não podem viajar pelo país sem autorização da Justiça e são obrigados a usar rastreadores. Não há tolerância para desobediências. No Brasil, o Conselho Nacional de Justiça já recomendou o monitoramento eletrônico, que precisa ser aprovado no Congresso. De tão falho, o sistema brasileiro ainda apresenta um terceiro empecilho. Psicopatas como o pedreiro Ademar não são considerados doentes mentais, inimputáveis, e, por isso, não se pode interná-los em clínicas para tratamento. Como resume o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Gilmar Mendes: "Se ele tivesse sido mantido preso, os seis meninos de Luziânia não teriam sido assassinados. Mas, e quando ele saísse da prisão, após o cumprimento total da pena, ele não faria outras vítimas?". O único agente do estado que demonstrou algum tipo de remorso até agora foi o juiz Luiz Carlos Miranda, que soltou o estuprador. "Estou tranquilo com a minha decisão, mas triste com o que aconteceu", reconheceu o juiz.

Hermínio Nunes/Ag. RBS/AE
DEPÓSITOS HUMANOS
As condições pestilentas das superlotadas cadeias brasileiras, como esta, em Florianópolis,
levam promotores e juízes a pôr em liberdade presos que ainda são uma ameaça à população,
como demonstra o episódio do maníaco de Goiás



"A jurisprudência é favorável ao réu"

Anderson Schneider
POUCO RIGOR
A promotora Maria José:
"A sociedade fica muito vulnerável"


Católica praticante, casada, mãe de dois jovens, a promotora Maria José Miranda, 54 anos, pediu ao juiz do processo que Adimar Jesus da Silva, condenado por haver abusado sexualmente de duas crianças, uma vez solto ficasse submetido a "fiscalização sistemática", porque, como diz, "não existe ex-estuprador". O pedido foi negligenciado. Em entrevista à repórter Juliana Linhares, Maria José falou sobre essa e outras
falhas da Justiça brasileira.

Como um criminoso tão perigoso pode ganhar a liberdade?
Os principais problemas são os erros crônicos do poder público quanto à segurança do cidadão de bem. O pouco valor, a pouca dedicação e a pouca responsabilidade do estado criaram essa excrescência. A nossa jurisprudência favorece muito o criminoso, em detrimento da sociedade ordeira.

O recurso de progressão da pena é mal utilizado?
É um absurdo. Nós temos dois Brasis. Um de mentirinha, de faz de conta, que é o Brasil do papel, onde um homicídio qualificado pode render pena de até trinta anos. Outro, o Brasil real, muito diferente, onde alguém é condenado a trinta anos e cumpre um sexto, fica só cinco anos na cadeia. Eu fico pensando em quanta gente contrata vigilantes, jardineiros, pessoas que vão entrar em casas em que há crianças, sem saber que são estupradores. A sociedade fica muito vulnerável a esse tipo de criminoso.

Por que as penas para um crime tão bárbaro acabam sendo tão baixas?
A Lei de Execução Penal diz que, a partir de um sexto de cumprimento da pena, o preso pode progredir de regime, ou seja, entrar em regime menos rigoroso. Enquanto esteve em vigor, a Lei dos Crimes Hediondos determinava que o praticante desse tipo de crime deveria cumprir dois terços da pena. Essa lei diferenciava o ladrão de tênis do ladrão de vida. Em fevereiro de 2006, em pleno Carnaval, o Supremo Tribunal Federal atentou a um pedido de revisão de pena de um estuprador e tornou inconstitucional a Lei dos Crimes Hediondos. Isso aconteceu porque a composição do Supremo conta com uma quantidade de ministros muito liberais que, no meu entender, excedem na proteção dos direitos e garantias dos criminosos. A decisão foi catastrófica para o país. Mais de 80 000 encarcerados já tinham cumprido um sexto da pena. Quem requereu a saída da prisão teve o pedido aceito.

A nova lei de crimes sexuais também é leniente?
A iniciativa foi boa – o que se queria era que houvesse mais rigor contra os crimes sexuais. Na prática, aconteceu o contrário. Até agosto do ano passado, o artigo 213 do código penal tratava de estupro, definido como conjunção carnal com mulher, e o 214 tratava de atentado violento ao pudor, ou seja, qualquer outro ato sexual praticado mediante violência ou grave ameaça. O réu que praticasse estupro e atentado era condenado pelos dois crimes e as penas eram somadas. Com a mudança, os dois crimes viraram um só, qualificado de estupro. Não há mais o somatório de penas. E, pior, os criminosos que cumpriam pena por dois crimes puderam abolir a condenação por atentado violento ao pudor. Milhares de estupradores foram parar na rua.

Uma psiquiatra avaliou Adimar, não identificou traços agressivos e ele acabou solto. Como se explica isso?
A psiquiatra fez um único e rápido atendimento em Adimar e disse que ele não tinha nenhuma doença mental nem necessidade de medicação controlada. Ora, ela disse o óbvio. Doente mental ele nunca foi. Ele tem completa noção do que é certo e errado. Tem uma inteligência superior à média para o grupo dele. Esse laudo, então, é um nada. Depois, ele foi submetido a uma avaliação psicológica e o psicólogo disse nada também. Atestou que ele era polido, que tinha coerência de pensamento e crítica aos comportamentos a ele atribuídos. Ora, todo psicopata é polido. Ele simula altruísmo e educação. Em resumo: ninguém disse que ele era perigoso.

Por que seu pedido de fiscalização sistemática não foi posto em prática?
Quando eu pedi, já esperava que não fosse feita. O meu pedido era quase utópico. No Distrito Federal e no entorno, temos apenas três oficiais de justiça para fiscalizar cerca de 20 000 presos em regime aberto. Esse monitoramento só é feito à noite, quando eles têm de estar recolhidos em casa. No caso do Adimar, houve uma única visita de fiscalização, em 20 de janeiro, às 23h21, e ele estava em casa.

Em resumo, o estado atuou em favor do criminoso?
Sim, e ele faz isso sempre. No Brasil, a jurisprudência é favorável ao réu e as vítimas ficam ao deus-dará. Se a Constituição pesasse 1 quilo, 900 gramas seriam de direito dos réus. Para eles existem direitos humanos, assistência judiciária gratuita, Pastoral Carcerária, Anistia Internacional, auxílio-reclusão, que é um dinheiro que o estado paga às famílias de presos que tinham emprego quando foram detidos. Mas escuta, e as vítimas? Elas não têm direito a nada? Eu não estou querendo dizer com isso que o réu não tem de ter direito a ampla defesa. É que essa defesa foi tão estendida que tudo que é pró-réu se admite. A Constituição prevê um direito e ele é alargado pelo lobby dos criminalistas.

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