O estado é cúmplice
O pedreiro baiano Ademar Jesus da Silva, de 40 anos, atirou num homem pelas costas, fugiu para o interior de Goiás, forjou uma nova identidade e, antes de ser capturado pela polícia há cinco anos, ainda teve tempo de molestar duas crianças. Preso por estupro, reduziu-se a apenas um entre os 470 000 internos que compõem a miserável massa humana dos cárceres brasileiros. Solto por apresentar "bom comportamento" e por ter cumprido um sexto de sua pena, revelou-se um psicopata. Saiu da penitenciária da Papuda às vésperas do Natal e, uma semana depois, voltou a estuprar crianças – só que, desta vez, não houve sobreviventes. Matou primeiro um adolescente de 13 anos. Nas semanas seguintes, agindo sempre com a mesma perfídia, ele atraía garotos a um matagal em Luziânia, a 70 quilômetros de Brasília, onde os violentava e, ato contínuo, assassinava-os a golpes de pau, martelo ou enxada. Há dez dias, a polícia finalmente conseguiu prender Ademar, que confessou os crimes. Os terríveis atos cometidos por ele destruíram seis famílias. Ao resto do país, confrontado com tal demonstração de ferocidade, sobrou somente a triste e necessária pergunta: não era possível ter evitado essa matança? Como costuma acontecer numa tragédia dessa proporção, ninguém aceitou a responsabilidade pela dor que agora dilacera os familiares das vítimas. Sim, o pedreiro Ademar executou os adolescentes, e certamente agora pagará por isso, mas ele não estava sozinho naquele matagal. A terrível verdade moral é que estavam lá também as polícias da Bahia e de Goiás, que falharam em não prender o pedreiro quando ele cometeu outros crimes; estavam lá ainda os três psicólogos e a psiquiatra que avaliaram o estado mental de Ademar durante o processo de soltura e não descobriram que ele representava um perigo para as demais pessoas; e, por fim, o juiz do caso, que acabou por soltá-lo, apesar das evidências de que se tratava de um perigoso estuprador. Todos são agentes do estado e, embora possam ressaltar que cumpriam a lei, pressionados pela necessidade de esvaziar as desumanas prisões brasileiras, não hesitaram em assinar os papéis que devolveram o pedreiro à vida em sociedade. O caso do maníaco de Goiás traz à luz, portanto, o putrefato estado do sistema prisional do país – que acumula mais presos do que pode, isolando-os em cubículos fétidos, muitas vezes por mais tempo do que deveria, não os reeduca e, fosse isso pouco, solta muitos deles sem saber se têm condições de retornar ao convívio social. O colapso desse sistema é tão absoluto que não há dados confiáveis sobre o assunto. Tanto o Ministério da Justiça quanto o Conselho Nacional de Justiça não dispõem de estatísticas sobre o número de presos beneficiados com o regime de progressão de pena – muito menos quantos desses internos foram soltos sem passar por uma avaliação psiquiátrica. Ou seja, não se sabe quantos Ademares em potencial circulam hoje pelas ruas do país. O problema certamente não está na possibilidade de redução da pena, mas na ausência de critérios objetivos para concedê-la. Desde 2003, o laudo criminológico, que serve justamente para isso, tornou-se facultativo: cada juiz decide se é ou não necessário fazê-lo, dependendo do caso. Quando o juiz exige o laudo, surge a segunda etapa do problema – as avaliações psicológicas são realizadas em apenas uma sessão. Foi o caso de Ademar. Diz o psiquiatra forense José Geraldo Taborda: "Não é tempo suficiente para dizer se o indivíduo é perigoso ou não. Em que grau? E, mais importante, ele representa uma inclinação para cometer que tipo de crime?". A sucessão de erros se prolonga após a soltura do preso, quando, na prática, deixa de haver qualquer monitoramento. No caso de Ademar, a promotora Maria José Miranda até pediu uma "fiscalização sistemática", sem sucesso (veja a entrevista abaixo). Nos Estados Unidos, presos que recebem o direito de cumprir parte da sentença em liberdade não podem viajar pelo país sem autorização da Justiça e são obrigados a usar rastreadores. Não há tolerância para desobediências. No Brasil, o Conselho Nacional de Justiça já recomendou o monitoramento eletrônico, que precisa ser aprovado no Congresso. De tão falho, o sistema brasileiro ainda apresenta um terceiro empecilho. Psicopatas como o pedreiro Ademar não são considerados doentes mentais, inimputáveis, e, por isso, não se pode interná-los em clínicas para tratamento. Como resume o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Gilmar Mendes: "Se ele tivesse sido mantido preso, os seis meninos de Luziânia não teriam sido assassinados. Mas, e quando ele saísse da prisão, após o cumprimento total da pena, ele não faria outras vítimas?". O único agente do estado que demonstrou algum tipo de remorso até agora foi o juiz Luiz Carlos Miranda, que soltou o estuprador. "Estou tranquilo com a minha decisão, mas triste com o que aconteceu", reconheceu o juiz.O caso do pedreiro que matou seis adolescentes após ser solto por "bom comportamento" evidencia o ruinoso colapso do sistema prisional brasileiro
Gustavo RibeiroJosemar Gonçalves LIVRE PARA MATAR
Apesar das evidências de psicopatia, o pedreiro voltou às ruas
pelas mãos da Justiça• Cronologia: os crimes que chocaram o país Hermínio Nunes/Ag. RBS/AE DEPÓSITOS HUMANOS
As condições pestilentas das superlotadas cadeias brasileiras, como esta, em Florianópolis,
levam promotores e juízes a pôr em liberdade presos que ainda são uma ameaça à população,
como demonstra o episódio do maníaco de Goiás