Saturday, April 03, 2010

Fazendeiros do ar


Nos sites de relacionamento, milhões de pessoas que moram
na cidade e nunca encostaram o pé na terra passam dia e noite
plantando, colhendo e até roubando o gado do vizinho


Suzana Villaverde

Fotos Laílson Santos
AGRICULTURA NUM CLIQUE
Jannete levanta de madrugada para cuidar da "fazenda"; o namorado reclama

A paulistana Glaucia Laurenti, 41 anos, é formada em sociologia, chefia um escritório, lembra-se apenas vagamente da fazenda do avô e não tem a menor intenção de ingressar na agropecuária. No entanto, planta e cria animais com dedicação obsessiva desde meados do ano passado – tudo virtualmente, no jogo Colheita Feliz, de longe o mais movimentado aplicativo do Orkut, o site de relacionamento que os brasileiros adoram. "Gostei dos animais bonitinhos e acabei incentivando todo mundo a jogar comigo. Já cheguei ao nível 32 e agora faço inveja a muita gente", diz Glaucia, que cumpre com alegria os rígidos prazos para irrigar as plantações, seguir o cronograma de colheita, tirar leite de vacas, dar a ração corretamente. O Colheita Feliz tem 19 milhões de "fazendeiros" no Brasil, sendo 11,5 milhões deles "ativos", como são chamados os que não perdem nenhum compromisso no mundo rural virtual. Seu concorrente direto, o Farm-Ville, tem só 7 milhões, mas isso porque o site que o aloja, o Facebook, não é tão vastamente popular no país. Em escala global, o Facebook congrega nada menos que 80 milhões de agricultores e pecuaristas que laboram diuturnamente no campo da internet.

A maior parte dos fazendeiros virtuais são mulheres, as grandes alimentadoras dos sites de relacionamento em geral. Elas costumam se encantar com detalhes decorativos para seu pedacinho de terra. Já os homens adotam uma abordagem mais prática. No FarmVille, o relações-públicas José Neves, 25, que pouco esteve em uma fazenda de verdade, impera como "O Fazendeiro", pelo empenho e pelo tamanho do patrimônio. "No começo, só plantava produtos que cresciam rápido, para ganhar experiência. Acordava de quatro em quatro horas e me organizava com a ajuda de uma planilha", relata. Ultimamente, está mais seletivo no que cultiva (quanto mais demora a colheita, maior o rendimento), mas ainda planta cerca de 10 000 áreas de cultivo – "células", no jargão do meio – por semana. Resultado: acumulou uma fortuna em farm coins, o dinheiro local. "Na semana passada, comprei de uma só vez cinco vilas no valor de 1 milhão cada uma e atingi o nível 70, que é o máximo. Pus uma vila do lado da outra, para me exibir mesmo. Em menos de dez minutos, subi cinco níveis e não parava de receber comentários", gaba-se Neves, que mantém um blog no qual dá dicas de como ser um bom agricultor virtual.

O REI DO GADO
Neves: planilhas de controle, nível
máximo no FarmVille e blog com dicas
para o bom agricultor


Por que as fazendinhas virtuais atraem tanta gente que nasceu e cresceu na cidade e está muito bem assim? Além de uma vaga nostalgia coletiva pelo mundo rural, conta muito a facilidade. Para começar a jogar, basta ter um perfil na rede social e adicionar o aplicativo. Não é preciso instalar nada, nem ler manual de instrução. Sementes, animais, casas, tudo pode ser conquistado cumprindo prazos e cuidando bem da lavoura e do pasto. Num estágio mais elevado, os fazendeiros virtuais começam a usar dinheiro de verdade. Ou melhor, de plástico, sob a forma dos cartões de crédito. No câmbio do Orkut, 1 real compraria 5 "moedas verdes", com as quais é possível adquirir luxos exóticos como uma árvore de ovos de Páscoa, um pavão e até renas do Papai Noel. No FarmVille, 1 dólar (a conversão é feita no momento da transação) compraria 5 farm cash. A parcela de jogadores que despendem dinheiro vivo não passa de 2%, mas com eles as empresas alcançam 90% de seu faturamento. Nem sempre há transparência: recentemente, descobriu-se que a Zynga, empresa americana que controla o FarmVille, usou de informações pouco precisas para embolsar parte da arrecadação de uma campanha de ajuda às vítimas do terremoto do Haiti. Mas o maior atrativo dos joguinhos parece ser mesmo seu poder de movimentar o perfil que cada jogador mantém no site. A fazenda dá motivos para conversar, trocar conselhos, contar vantagens e exibir troféus. "Os jogos virtuais suprem a necessidade do ponto de encontro dentro da rede social. As comunidades desempenhavam esse papel, mas estão perdendo força e agora os jogos viraram o assunto comum", explica Tahiana D’Edgmont, diretora-geral e sócia no Brasil da Mentez, a empresa americana que controla o Colheita Feliz, um jogo desenvolvido por programadores chineses.

BOBEOU, PERDEU
Glaucia, que joga com a filha: de vez em
quando, uma assalta a fazenda da outra


Cada fazendeiro, ao obter sua gleba, convida amigos para fazer o mesmo, montando uma espécie de condomínio à sua volta. A socióloga Glaucia, por exemplo, apresentou o jogo à filha Giuliana, 17, que não só cuida da sua terra como ajuda a mãe a cuidar da dela. "Às vezes não me planejo direito e ela ou o namorado fazem a colheita por mim", conta. Na atividade agrícola virtual de Glaucia e Giuliana ocorrem, esporadicamente, roubos de produtos e implementos, um dos recursos mais motivadores do Colheita Feliz no Brasil (em outros países, foi removido). Pois é, no mundo da terra virtual impera um espírito de sem-terra. "No início eu tinha dó, mas ela começou a pegar de mim e agora eu também roubo o que encontrar", informa a mãe. O furto mútuo não cria ressentimentos. Quem está dentro se diverte, mas quem está fora confessa que se irrita com a dedicação dos fazendeiros do ar. "Já acordei assustado de madrugada porque ela se levantou para colher sei lá o que na fazendinha", reclama o coordenador de eventos Cacá de Oliveira, 34, sobre o empenho da namorada, a atriz Jannete Tomiita, 24. "Chego em casa e ela às vezes nem repara que eu entrei pela porta. Falei que vou levar o notebook para o trabalho e colocar senha no computador de casa, igual fazem com as crianças", ameaça. Jannete nem ouve, ocupada que está em arar a terra, colher frutas e fazer carinho nas vaquinhas – porque, como todo pecuarista virtual sabe, elas dão mais leite assim.

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