A vitória é colossal
O debate sobre a universalização do sistema de saúde nos Estados Unidos é tão antigo quanto a batalha pelo voto feminino. Chegou às campanhas presidenciais há 100 anos, sempre desencadeou paixões políticas incandescentes, mas só saiu do papel na semana passada: por 219 votos contra 212, os deputados aprovaram a reforma que vai incorporar ao sistema 30 milhões de americanos que hoje não têm cobertura. É uma dramática mudança na seguridade social americana, a maior desde 1965, e significa uma vitória política colossal para o presidente Barack Obama. "Este dia representa mais uma sólida pedra colocada nos alicerces do sonho americano", celebrou Obama na terça-feira. Ele assinou a nova lei com 22 canetas diferentes (para multiplicar o brinde), ao lado de centenas de democratas. O toque de sentimentalismo de encomenda ficou por conta da presença do garoto Marcelas Owens, 11 anos, cuja mãe morreu sem tratamento, mas de doença curável, por falta de plano de saúde. Obama chegou longe, mas pagou caro. Para alguns, caro demais. Empenhou-se pessoalmente no jogo político, apostando todo o seu capital. Chegou a virar mestre de cerimônias de um debate com aliados e adversários que durou seis horas e foi transmitido ao vivo pela TV. Cabalou votos como vereador de primeira eleição. Deu carona no avião presidencial a democratas recalcitrantes. Fez apelos em nome de "milhões de americanos". Na última hora, na tarde do domingo de votação, ainda precisou fazer uma derradeira concessão ao grupo do deputado Bart Stupak, democrata de Michigan, militante contra o aborto: nenhum centavo de dinheiro público será usado para cobrir aborto, com exceção dos casos de estupro, incesto ou risco de vida para a mãe. No fim, em grande medida graças ao trabalho da incansável Nancy Pelosi, presidente da Câmara, Obama saiu com a reforma, mas não levou um só voto republicano e ainda assistiu à debandada de 34 democratas. Para ratificar a reforma no Senado, onde os democratas perderam a maioria de sessenta votos que derruba qualquer obstrução, Obama sacou uma malandragem regimental. Em vez de mandar a reforma como tal, enviou-a como "reconciliação", medida que requer apenas cinquenta votos. A malandragem: uma "reconciliação" se destina a harmonizar dados orçamentários entre projetos aprovados pelas duas Casas. É só para assuntos orçamentários, portanto. Os republicanos reclamaram que nem tudo na reforma era tema orçamentário. Foram atropelados, por 56 votos a 43. Aprovada, a reforma tem muito do que republicanos historicamente repudiam, como a intromissão do governo no mercado, e pouco do que democratas historicamente apoiam: não cria um sistema público para competir com o mercado e ainda não universaliza o serviço – cerca de 17 milhões de americanos seguirão de fora do sistema. O grosso da reforma só entra em vigor em 2014 (veja o quadro). Dos 30 milhões incorporados ao sistema, metade vai recorrer ao Medicaid, criado em 1965 para atender os pobres, e outra metade vai comprar plano de saúde no mercado privado – um mercado novo, fortemente regulado pelo governo, que definirá o leque mínimo de benefícios, limite de preços e igualdade de tratamento entre velhos e jovens, doentes e sadios. No todo, a reforma vai custar 938 bilhões de dólares em dez anos e reduzirá o déficit do governo em 138 bilhões de dólares, segundo o Congressional Budget Office, responsável por calcular o impacto orçamentário das propostas dos parlamentares. Para fabricar o milagre de ampliar o serviço de saúde e ainda assim reduzir o déficit, a reforma aumenta o imposto do Medicaid, tributa em 3,8% os ganhos com investimentos financeiros e promete a ladainha de sempre: cortar gastos na saúde, reduzindo o desperdício. Os republicanos apostam que é tudo conta de chegada e que o déficit vai mesmo é explodir. Obama tem a seu favor o fato de ter insistido numa proposta impopular, coisa que só líderes de verdade fazem. Como consolo, ele, que vinha sendo comparado a Jimmy Carter, passou a ser visto como uma versão de Franklin Roosevelt. O problema é que a recompensa para líderes pode só vir a longo prazo, no afago da história, não na forma de urna cheia na eleição seguinte. Obama, com um mandato inteiro pela frente, tem pressa....mas o preço é uma incógnita: Obama aprovou uma reforma histórica
na saúde, algo que ninguém consegue há décadas, mas terá consumido
nisso todo o seu capital político?
André Petry, de Nova YorkJason Reed / Reuters EM DIA DE ROOSEVELT
Obama, com as 22 canetas, o garoto Owens e a incansável Nancy Pelosi,
ao assinar a reforma da saúde• Quadro: Os cidadãos e as seguradoras Nicholas Kamm/AFP VIRADA NO FINAL
Stupak, contra o aborto: concessão de última hora