Saturday, March 20, 2010

A revolta dos royalties


Mais de 150 000 pessoas vão às ruas, no Rio de Janeiro, protestar contra uma emenda que reduz drasticamente os ganhos do estado com o petróleo – e faz refletir sobre a melhor maneira de dividir tamanha riqueza


Ronaldo França

Fotos Paulo Vitor/AE e Marcelo Regua/Ag. O Dia
UNIDOS NA GUERRA
Cabral, entre Carlos Minc e Paulo Hartung (à esq.): políticos de diferentes matizes e artistas na passeata para manter o dinheiro do petróleo


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Agitando cartazes com dizeres do tipo "Não mete a mão no meu petróleo", 150 000 pessoas – algumas até com a cara pintada de azul e branco, cores da bandeira do estado do Rio de Janeiro – marcharam nas ruas do centro da capital, na última quarta-feira, em protesto contra uma emenda que, se aprovada no Senado, passará a destinar os royalties do petróleo a todos os estados e municípios brasileiros – e não apenas àqueles que têm reservas ou refinarias, como é hoje. O Rio, que detém 83% da produção, perderia algo como 7,3 bilhões de reais por ano, dinheiro suficiente para pôr em xeque obras de infraestrutura que o governo do estado já garantiu ao Comitê Olímpico Internacional que colocaria de pé até 2016, ano dos Jogos. O exaltado ato contra a emenda, de autoria do deputado federal Ibsen Pinheiro (PMDB-RS), o mesmo que foi cassado em 1994 em consequência da CPI do Orçamento, reuniu num único palanque artistas e políticos de diferentes matizes, como a ex-governadora Rosinha Garotinho, o deputado federal Fernando Gabeira e o governador Sérgio Cabral, de quem partiu a iniciativa do movimento e que passou a semana esbravejando, em público, palavras como "leviandade" e "linchamento", além de chorar. Também foram pregadas no Cristo Redentor e em outros cartões-postais faixas bradando "contra a covardia", que davam o tom da revolta. Na semana passada ainda, Cabral ouviu do próprio presidente Lula: "Se o Senado aprovar a emenda, eu veto depois".

Rediscutir a divisão dos royalties do petróleo faz todo o sentido num cenário em que, às jazidas exploradas em campos já maduros, se soma agora uma gigantesca reserva sob a área do pré-sal, ainda por desbravar. Estima-se que, dessas jazidas, será possível extrair mais 80 bilhões de barris (seis vezes a capacidade brasileira) – ordem de grandeza que, ninguém discorda, torna razoável uma nova reflexão sobre os critérios de distribuição do dinheiro proveniente dos royalties. O problema é a maneira como isso se dará. A emenda Ibsen nada acrescenta ao debate. Seu primeiro absurdo diz respeito à abrangência pretendida: além de englobar as áreas do pré-sal cujas regras para a exploração não foram definidas, a ideia é também incluir aquelas que já foram licitadas e ainda as jazidas em que o petróleo jorra há mais de uma década, como na Bacia de Campos. Especialista em direito constitucional, o advogado Luís Roberto Barroso traz à luz as consequências: "Além de ser uma conduta pouco transparente, mudar as regras do jogo em relação a contratos em vigor só traz insegurança jurídica".

Outro problema com a emenda em questão é a distorção que ela cria ao se balizar pela lógica do Fundo de Participação dos Estados e Municípios, criado em 1965, para ratear os royalties. Orientado pela filosofia da compensação, segundo a qual as unidades federativas mais pobres devem sempre receber mais dinheiro da União, tal fundo, se aplicado agora, faria o Rio, o líder na produção de petróleo, despencar do atual posto de maior beneficiário dos royalties à 22ª posição do ranking, atrás de Piauí e Tocantins, estados sem uma gota de óleo sequer. Uma distorção. Em meio à insurreição da semana passada, Ibsen acrescentou um remendo ao próprio texto – novo absurdo. A proposta é fazer a União pagar a estados e municípios, por ora, o equivalente ao que eles deixariam de receber por causa da emenda. "É o regresso à velha visão paternalista do estado, que deve prover tudo à revelia da própria saúde financeira", avalia o economista Maílson da Nóbrega.

A polêmica dos royalties chama atenção para a maneira pedestre como o assunto vem sendo tratado no Brasil – sem se iluminar com a experiência internacional e até se desvirtuando das origens do tributo. No século XV, os royalties foram criados na Inglaterra como uma compensação à realeza por ceder suas terras à exploração de minério, e essa ideia de ressarcir o dono persiste até hoje nos países mais desenvolvidos. Os royalties brasileiros se distanciam do conceito original justamente em sua essência: segundo reza a Constituição, a União é proprietária única do petróleo, e só ela teria direito aos royalties – só que aqui eles se estendem, com excessiva complacência, a estados e municípios. Funciona assim desde que tal cobrança duplicou, com a Lei do Petróleo de 1997, passando de 5% para 10% do lucro sobre a exportação. O tributo passou a sofrer a distorção de ter como uma de suas finalidades reparar eventuais perdas infringidas a estados e municípios. O imposto sobre circulação de mercadorias e serviços (ICMS) passou a ser recolhido nos estados de destino do petróleo, e não naqueles em que era produzido – prejudicando os que detinham as reservas. Os royalties, em certa medida, compensavam isso. Estados e municípios também garantiram seu generoso quinhão, alegando sofrer impactos ambientais e sociais com a exploração do petróleo. Um argumento questionável. "Se fosse de fato uma indenização, deveria ser paga no exato valor do dano, e não tratada como um tributo permanente", diz o ex-secretário da Receita Federal Everardo Maciel.

Ao contrário da racionalidade que requer questão tão complexa, ela repousa hoje sob a sombra da ideologia. Para se ter uma ideia, a atual emenda Ibsen está compreendida num projeto de lei que o governo federal enviou ao Congresso, em setembro do ano passado, cujo objetivo é mexer no próprio modelo de exploração do petróleo no país. A ideia, de um nacionalismo obtuso que relembra os tempos da campanha "O petróleo é nosso", da década de 50, é fazer vigorar o sistema de partilha, segundo o qual, no lugar de certos impostos recolhidos das empresas, a União passa a receber o pagamento em barris. Periga tornar-se um monopólio da exploração. À espera de aprovação no Senado, o texto havia sido meticulosamente discutido em reunião no Palácio da Alvorada, ocasião em que um dos presentes chegou a indagar: "Alguém já viu coisa parecida noutro lugar?". A que o ministro da Comunicação Social, Franklin Martins, respondeu: "Na Líbia". Trata-se de uma das mais longevas ditaduras do planeta. Espera-se que, junto com a questão dos royalties, toda essa discussão passe a ser conduzida à luz da democracia – e da razão.

Fotos Fernando Quevedo/Ag. O Globo e Arquivo Ag. O Globo
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