Engolidos pela favela
A população nos morros do Rio de Janeiro cresce ao dobro
do ritmo do restante da cidade – e o avanço dos barracos provoca
a degradação de bairros e desvaloriza aquelas áreas de maior IPTU
Ronaldo Soares
Baixo Rocinha |
Nos anos 70, o administrador Raimundo Bulcão, 82 anos, desfez-se de três imóveis para con-cretizar o sonho de viver numa casa de 700 metros quadrados em que, da janela, se descortinava a imensidão verde da Mata Atlântica, no Rio de Janeiro. Essa vista sumiu. Ao longo de quatro décadas, ela foi desaparecendo à medida que a favela da Rocinha se alastrava a passos largos pelo morro – até chegar a exatos 80 metros da casa do administrador: "O odor reinante aqui é uma mistura de lixo com esgoto, e o som varia entre tiroteio e baile funk. Verde, quase não se vê mais". Seu bairro, o Alto Gávea, já ganhou até apelido: Baixo Rocinha. Como lá, várias das áreas mais nobres do Rio, aquelas também de maior IPTU, estão hoje cercadas de barracos por todos os lados – retrato de um acelerado processo de expansão das favelas que, ano a ano, ganha novo impulso por uma questão de cunho demográfico. Novas projeções, conduzidas pelo demógrafo Kaizô Beltrão, da Escola Nacional de Ciências Estatísticas do IBGE, indicam que até o fim de 2010 a população das 1 020 favelas cariocas atingirá 1,3 milhão de habitantes – 22% mais do que uma década atrás. O número salta aos olhos: é quase o dobro do ritmo de crescimento populacional do restante da cidade. No Rio, um de cada cinco moradores já vive em favelas e, mantido o ritmo até 2020, esse será o caso de um em cada quatro cariocas. Explica Kaizô Beltrão: "As altas taxas de fecundidade estão contribuindo de forma decisiva para o inchaço nos morros".
Os elevados índices de fertilidade nas favelas cariocas – onde a média de filhos por mulher é de 2,5, 30% maior que a do Rio como um todo – se explicam, em parte, por razões comuns a outros lugares do Brasil em que grassa a pobreza. Na base de tudo está o baixo nível de escolaridade, fator diretamente associado à proliferação de famílias numerosas. Para se ter uma ideia, mulheres brasileiras que não frequentaram a escola têm até o triplo de filhos do que aquelas que concluíram uma universidade, segundo dados do IBGE. Além da própria desinformação sobre os métodos contraceptivos, a ausência de estudo desencadeia um ciclo vicioso que se percebe, talvez com mais nitidez, nas favelas do Rio. Diz a especialista Rosiska Darcy de Oliveira, doutora em educação: "Bem cedo, as meninas ali fracassam na escola e, sem nenhum projeto de vida, preenchem o vazio com a gravidez". Um novo levantamento da Fundação Getulio Vargas (FGV) revela a extensão do problema: nas favelas, 25% das adolescentes entre 15 e 19 anos de idade já têm pelo menos um filho – cinco vezes a média da cidade. Dado espantoso que não deixa dúvidas: a maternidade precoce é um potente motor para a explosão populacional nos morros do Rio de Janeiro.
Evidentemente existem outras razões para a visível proliferação das favelas cariocas – um processo secular que tem suas raízes cravadas na constante complacência das autoridades. Os primeiros registros de ocupação ilegal de terras no Rio de Janeiro datam do século XIX, época em que os escravos recém-libertos começaram a se instalar maciçamente nos morros. Já no século XX, sobretudo a partir da década de 50, com a industrialização do país, grandes levas de nordestinos aportaram na cidade em busca de emprego e fincaram seus barracos nas favelas – que inflaram. Em São Paulo, ocorreu algo semelhante, com a diferença que, no Rio, o crescimento da população favelada foi abertamente incentivado pelo populismo reinante. Na década de 80, o então governador Leonel Brizola chegou a proibir o ingresso da polícia nos morros, deixando o terreno livre para as invasões, que só cresciam. "Favela não é problema, é solução", pregava o então vice-governador Darcy Ribeiro, resumindo o pensamento vigente.
O resultado foi a expansão caótica das favelas cariocas – que não param de avançar sobre a cidade formal, provocando uma flagrante degradação no entorno. Janelas cravejadas por balas de fuzil e lixo que desce pelas encostas se acumulando nas calçadas já foram incorporados à paisagem de prédios vizinhos às favelas Pavão-Pavãozinho, em Copacabana, e Cantagalo, em Ipanema. Pelo terreno de um dos edifícios chega a passar um cano que traz o esgoto da favela, solução improvisada décadas atrás que nenhuma autoridade tratou de melhorar. "Quando o cano entope, fica impossível permanecer no prédio, tal é o mau cheiro", conta a bióloga Mônica Morgado, 46 anos, que se mudou para lá na década de 70. A decadência de áreas como essa se faz refletir no valor dos imóveis. Um estudo da Associação de Dirigentes de Empresas do Mercado Imobiliário (Ademi) mostra que nos prédios colados às favelas da Zona Sul, a mais nobre da cidade, o preço dos apartamentos caiu 50%. "Mansões lindas na minha rua ficam até cinco anos com a placa de vende-se e são repassadas por valor irrisório", diz o advogado Luiz Fernando Penna, 61 anos, que mora próximo à Rocinha e às casas do cirurgião Ivo Pitanguy e do compositor João Bosco. Perto dele também funciona, à luz do dia, um ponto de venda de drogas, para o qual alguns moradores têm vista.
Fotos Eduardo Martino/Documentography |
Chance de melhora |
Para o problema não há outra saída senão o estado se fazer presente nas favelas – algo que, por décadas a fio, simplesmente não aconteceu. À exceção das ocupações menores e mais recentes, já não é mais possível remover a imensa maioria delas, dada sua dimensão. Os especialistas são unânimes em afirmar que o rumo mais acertado, nesse caso, passa pela incorporação das favelas à cidade. Diz o urbanista Sérgio Magalhães: "Só com a legalização dos imóveis e a urbanização dos morros elas deixarão de viver à margem do estado e da lei e se integrarão, enfim, à economia formal". A recente ocupação de alguns morros pela polícia, por meio das chamadas unidades pacificadoras, tem cumprido um papel básico e decisivo para isso: expulsar os bandidos da favela. Um bom começo. Os galopantes indicadores demográficos – e a própria fotografia da cidade engolida por favelas – mostram que é preciso, mais do que nunca, acelerar o passo.
Com reportagem de Ronaldo Fran