Saturday, February 20, 2010

O papel do estado no pós-crise

É só pegar os gatos gordos...!

Na bitola do maniqueísmo, o estado triunfa sobre o mercado,
ou o mercado triunfa sobre o estado. No coração do capitalismo
pós-crise, o debate é bem mais complexo - e a campanha no
Brasil só ganharia se encarasse a questão com maturidade


André Petry, de Nova York

Montagem sobre foto de Pool/Equipa/Getty Images


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As campanhas presidenciais no Brasil carregam uma maldição. Sempre viram uma disputa dolorosamente simplista sobre o papel do estado na economia, na qual os candidatos são vistos em preto e branco: ou a favor do mercado ou a favor do estado. A versão piorada desse maniqueísmo sugere que toda intervenção do estado é para o bem do povo, enquanto a liberdade do mercado é a gazua dos gatos gordos do capitalismo... Agora que o lançamento da candidata do PT começa a definir o jogo de 2010, é uma oportunidade para tentar exorcizar a maldição em favor de um debate mais maduro. Em 15 de setembro de 2008, quando o banco de investimentos Lehman Brothers faliu e disparou uma onda de choque pelos mercados globais, os Estados Unidos estavam a 49 dias de eleger um novo presidente - e, desde então, o debate sobre o papel do estado na economia esquentou. O republicano George W. Bush, a contragosto, lançou um pacotaço de 700 bilhões de dólares para salvar os bancos. Não foi sucesso de crítica, muito menos de público, mas evitou que o sistema fosse à garra. Eleito, o democrata Barack Obama fez seu próprio pacote, de 790 bilhões, para sacudir a pasmaceira econômica. Levantou uma maré de protestos contra o assanhamento intervencionista do estado, mas parece ter evitado que a recessão se aprofundasse.

Um trilhão e meio de dólares depois, no entanto, segue o debate: o estado deve intervir mais na economia? Precisa regular mais o mercado? Como? Quanto? As respostas são mais complexas do que os ortodoxos do preto e branco sugerem. Com milhares de instituições e trilhões de dólares, o sistema financeiro dos Estados Unidos implodiu em setembro de 2008, deflagrando a pior crise dos últimos oitenta anos. É o maior, o mais influente e o mais dinâmico sistema financeiro do planeta. Em Wall Street, como nos conventos e nas prisões, acontece o que há de melhor e de pior. Ali, germinam escândalos bilionários, como o da falência da Enron, e golpes espetaculares, como o do escroque Bernard Madoff. Ali, deram-se fusões de tirar o fôlego, como a formação do Citigroup, e criaram-se inovações financeiras que impulsionam a economia mas poucos entendem, como fundos de hedge e derivativos. É esse universo que Obama quer regular. Sua proposta, dividida em cinco capítulos ao longo de 100 páginas, foi apresentada em junho passado. Tem medidas fáceis de implementar, como regras contábeis para evitar uma nova farra das hipotecas, e outras mais complicadas, que requerem a aprovação do Congresso, como ampliar o poder regulatório do Fed, o banco central americano. Até agora, dadas a complexidade do assunto e a dificuldade de antecipar seus efeitos na vida real, quase nada saiu do papel.

Pablo Martinez Monsivais/AP
O QUE ACONTECEU?
Banqueiros preparando-se para depor no Congresso americano: só para entender a implosão


Com maioria democrata, a Câmara dos Deputados aprovou sua versão da reforma regulatória, aplaudida pela Casa Branca, mas o Senado está em plena discussão. Deve-se adotar a "regra Volcker", concebida por Paul Volcker, conselheiro de Oba-ma e ex-presidente do Fed? A regra pretende conter o ímpeto especulativo dos bancos, limitando-lhes a liberdade de fazer operações que não sejam em favor dos clientes. Isso ajuda a conter uma crise como a de agora? O JPMorgan Chase já disse que esse tipo de negócio responde por menos de 2% de sua atividade. No caso da Goldman Sachs, não chega a 10%. Não é pouco demais para fazer diferença? Outra medida polêmica é a criação da agência de proteção financeira do consumidor. Na bolha imobiliária, surgiram casos de clientes enganados por contratos ilegíveis e critérios incompreensíveis de reajuste de prestações. A agência parece uma saída simples, mas será que inventar um burocrata com poder de vasculhar hipotecas e cartões de crédito é uma providência saudável? Padronizar contratos bancários é um modo de evitar contrabandos em letra miúda, mas não será também uma forma de tolher a criatividade e a inovação?

As dúvidas nascem a partir de um consenso: há, sim, necessidade de regular e supervisionar o mercado financeiro. "Até banqueiros concordam com isso", diz o professor Barry Eichengreen, da Universidade da Califórnia, em Berkeley (veja entrevista na página 70). Claro, há os que querem regular para pegar os gatos gordos, colocar banqueiro na cadeia e, quem sabe, fazer os bancos voltar às suas atividades básicas - receber depósitos e fazer empréstimos, um retrocesso simplesmente impraticável. O Congresso americano até criou uma espécie de CPI da Crise, na qual os banqueiros depuseram, mas a ideia ali é entender o que implodiu o sistema, não enjaular tubarão. Na semana passada, a Casa Branca e o Senado pareciam ter concordado em que uma medida central é criar um "conselho regulador", sob o comando do secretário do Tesouro. A missão seria cuidar exclusivamente do risco sistêmico - expressão usada para definir um conjunto de decisões financeiras que, isoladamente, são inofensivas, mas, examinadas no todo, representam uma ameaça à estabilidade do sistema inteiro. De novo, parece uma boa ideia, já que os bilhões de dólares de socorro aos bancos pretendiam conter justamente o risco sistêmico, mas será boa regulação? As regras excessivas matam a criatividade do mercado e engessam a economia. Uma regulação fraca, por outro lado, pode ser um dos motivos da atual crise. Os reguladores não viram o monturo de ativos tóxicos na mão dos bancos, e os que viram não fizeram nada ou, por falta de meios adequados, não puderam fazer nada.

Nos últimos anos, o mercado financeiro evoluiu tremendamente, e as instâncias fiscalizadoras ficaram para trás. Em On the Brink (À Beira do Abismo), seu livro de memórias recém-lançado, o ex-secretário do Tesouro Henry Paulson conta que ao assumir, em 2006, encontrou um órgão depenado. "A infraestrutura tecnológica era dolorosamente antiquada", diz. Nem se monitorava Wall Street em tempo real. Para reduzir despesas, a "sala do mercado" fora desativada. Um sistema de computador dependia de uma unidade de processamento dos anos 70. Havia trinta anos, as taxas de juros eram calculadas por um funcionário que fazia as contas a mão - e estava por se aposentar. O modelo regulatório do sistema financeiro surgiu no sufoco da depressão dos anos 30, época em que se usava trem para mandar dinheiro de Nova York a São Francisco. Hoje, cada país tenta sua fórmula, sem consenso. Uns concentram os poderes regulatórios numa agência. Outros pulverizam-nos por diversos órgãos. Até 1997, na Inglaterra, a atividade regulatória estava distribuída por nove órgãos, quando se criou a FSA, concentrando todos os poderes. Resolveu? Bem, na crise de 2008, a FSA entrou na linha de tiro porque não se antecipou à falência do Northern Rock. Agora, na campanha eleitoral, os conservadores anunciaram que, em caso de vitória, vão fechar a agência e devolver as atribuições ao Bank of England.

Na visão simplista das coisas, toda regulação é contra o mercado, e todo mercado regulado é contra o capitalismo. Nem Adam Smith (1723-1790), pai do liberalismo, era totalmente contra a regulação, a intervenção do estado. Smith desancava banqueiros e via pelo menos duas dezenas de funções insubstituíveis a ser cumpridas pelo estado. John Maynard Keynes (1883-1946), santo padroeiro dos estatistas, tampouco desprezava o livre mercado, cujo primado na criação da riqueza ele reconhecia. Smith escreveu sua obra maior em 1776 e se insurgiu contra um estado em que o rei decidia se um industrial podia abrir uma segunda fábrica ou não; em que um desempregado de Manchester que ousasse tentar uma colocação em Londres poderia ser preso e condenado à morte. A força teórica de Keynes não está na negação da livre-iniciativa, mas na demolição da crença de que as pessoas agem racional e previsivelmente em suas relações econômicas e, portanto, tudo pode ser explicado por lógica e estatística. Ou, como magistralmente resumiu o economista americano Hyman Minsky (1919-1996): "Keynes sem o conceito de incerteza é comoHamlet sem o príncipe da Dinamarca". A atualidade de Keynes pode ser resumida no conceito: "Nós não existimos para os mercados. Os mercados é que existem para nós". Ela ficou ainda mais evidente depois que o trem especulativo de Wall Street esmagou as pernas das forças produtivas. A de Smith fica clara também se adaptarmos para ele o conceito keynesiano: "Nós não existimos para os governos. Os governos é que existem para nós".

Crises são inevitáveis

O professor Barry Eichengreen, da Universidade da Califórnia, em Berkeley, defende a regulação do mercado financeiro, mas avisa que crises são inerentes ao capitalismo.

Getty Images


Há consenso de que o mercado financeiro precisa ser regulado pelo estado?
Há quem mantenha a velha retórica da autorregulação, que implica deixar ir à falência aqueles que assumem riscos excessivos e se dão mal. No mercado financeiro, porém, isso não é possível. Temos bancos grandes demais, interligados demais, para que possam falir sem colocar em risco todo o sistema. Por isso, é preciso regular. Até banqueiros concordam com isso. Estive em Davos no mês passado, durante o Fórum Econômico Mundial, e metade dos banqueiros com quem conversei acha que o estado precisa adotar um papel mais decisivo na regulação e na supervisão dos mercados financeiros.

A boa regulação financeira teria evitado a atual crise? Por melhor que seja, a regulação financeira não evita crises. As crises, as recessões, a volatilidade são intrínsecas ao funcionamento do capitalismo e da economia de mercado. São as fraquezas do mercado. A saída é usar o poder regulador e as políticas distributivas para limitar ou compensar as crises e suas consequências negativas. Quem fica desempregado, por exemplo, pode ser requalificado, receber seguro-desemprego.

O capitalismo está num mau momento? Nas economias avançadas, o momento é ruim. Mas nos mercados emergentes é o oposto. O que levou os Brics à atual posição de proeminência? A economia de mercado e a liberalização. Não se conhece nada melhor do que dar liberdade aos empreendedores. É a mola propulsora do milagre econômico da China. Com políticas saudáveis e estáveis, com boas políticas regulatórias e macroeconômicas, o capitalismo responde positivamente. O Brasil é um exemplo disso. O capitalismo moderno, surgido na Revolução Industrial, tem 200 anos de experiência. Sabemos que nele há benefícios e custos. Mas também sabemos que os benefícios do capitalismo são muito maiores que os custos.

É preciso inovar

Edmund Phelps, dono de um Nobel de economia e professor da Universidade Columbia, quer os bancos assumindo riscos - mas riscos em setores mais criativos e inovadores.

AP


Qual o papel do estado na economia pós-crise? Temos de fazer uma séria reestruturação do setor financeiro, mas não acredito que regulamentar para reduzir o risco seja suficiente. O risco, em si, não é o problema. Os bancos precisam ser reorientados para financiar empresas e novos negócios, principalmente empresas com projetos de inovação. Os banqueiros de hoje não prestam atenção nas novas oportunidades, nem as criam. Não olham para os novos produtos, as novas técnicas de produção, como faziam no passado. Eles só pensam no curto prazo. Estão focados demais em resultados trimestrais.

Está faltando inovação na economia americana? Sem dúvida, basta verificar a queda no número de novas empresas, de empresas recém-criadas. Há um declínio inclusive no volume de capital destinado ao financiamento de inovações. Ainda existe muita gente criativa no Vale do Silício, mas até isso tem mudado. O número de engenheiros no Vale do Silício vem caindo nos últimos dez anos. Uns foram atraídos por novas oportunidades em seu país de origem, outros perderam o emprego e há, ainda, os que se aposentaram e não foram substituídos por nenhum jovem. É reflexo dessa visão de curto prazo, imediatista, trimestral. Hoje, os bancos pagam bônus polpudos a seus dirigentes e não planejam nada para o médio prazo.

É papel do governo limitar os bônus de Wall Street? Pode-se argumentar que os bancos assumiram riscos excessivos guiados pela perspectiva de altos bônus, mas isso é superficial. Essa revolta contra os bônus está mal direcionada. Seria melhor pressionar os banqueiros a fazer investimentos em setores mais produtivos e mais criativos. Não é desejável que os bancos deixem de assumir riscos. Queremos que eles assumam riscos. A questão é que devem assumir riscos em setores que deixam a economia mais saudável, vibrante, inovadora. Se os bancos estivessem fazendo isso, e pagando altos bônus a seus dirigentes, ninguém estaria reclamando.

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