É comício ou inauguração?
A ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, candidata do presidente Lula na sucessão presidencial, participou na semana passada do programa Superpop, da Rede TV!, apresentado pela magnética Luciana Gimenez. O ponto alto foi televisionado de uma cozinha improvisada nos bastidores, onde a ministra se propôs a fazer uma omelete. "Se não der certo, você ajeita", disse a ministra. Não deu. Saiu um prato de ovos mexidos. Dilma colocou a culpa na panela. "Tem que ter Tefal", disse ela, referindo-se ao revestimento antiaderente, marca registrada da empresa francesa SEB. A conversa continuou no palco, diante da audiência predominantemente feminina do programa. Daquele momento em diante, Dilma fez omeletes sem quebrar ovos, prato típico do político com cargo no Executivo e que não pode perder uma chance daquelas de fazer campanha fingindo não estar pedindo votos. Foi um show de culinária política. Jornalistas amestrados eram chamados no monitor com o objetivo de levantar a bola para a ministra cortar. Ela aproveitou todas as deixas. Saiu aplaudida e feliz de ter tido a oportunidade de se mostrar "gente como a gente", nas próprias palavras dela. Nos últimos meses, fazendo de conta que não é o que todo mundo sabe que ela é, Dilma trocou definitivamente os terninhos de ministra pelo figurino de candidata. Fora da cozinha, em eventos em que aparece sempre ao lado do presidente Lula, a ministra tem conseguido tocar sua campanha à Presidência da República sem o menor constrangimento legal e sem chamar a atenção do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Os partidos de oposição vêm tentando, sem sucesso, configurar as aparições da candidata à sucessão de Lula como sendo campanha eleitoral antecipada. As reclamações ao TSE são feitas caso a caso. E, uma a uma, elas têm sido indeferidas. Na sexta-feira passada, o ministro auxiliar do TSE Joelson Dias julgou mais uma dessas queixas e decidiu a favor do governo. O magistrado entendeu que nos discursos de Lula, na presença de Dilma, durante as inaugurações da Barragem Setúbal, em Jenipapo, e do câmpus de Araçuaí, ambas em Minas Gerais, não houve "manifestações de apoio a nenhum eventual candidato, menção a candidaturas ou pedido de voto". O que houve em Jenipapo e Araçuaí foram mais duas omeletes feitas sem quebrar ovos. Ou seja, a campanha foi tocada, os votos foram pedidos, mas, formalmente, não houve ilegalidade perante a legislação eleitoral. A técnica de superexposição da ministra ao lado de Lula está sendo muito bem executada. Fora dos palanques, a ministra é proclamada candidata de Lula à própria sucessão com a insistência dos vendedores de enciclopédia do passado. Todos os dias nos jornais, os petistas falam com ardor da candidatura presidencial de Dilma. As pesquisas mostram que metade dos entrevistados sabe que ela é candidata. Quando a ministra sobe ao palanque ao lado de Lula, desce a cortina do silêncio e somem os termos que podem ferir a legislação. Mas é óbvio para todos ali, no palco ou na plateia, que se está diante de um evento político-eleitoral visando à sucessão de Lula nas eleições presidenciais de outubro e novembro, se houver segundo turno. Entre 2007 e 2008, quando ainda não era cozinheira-candidata, Dilma saiu do Palácio do Planalto apenas 32 vezes. Mas desde agosto passado ela já participou de 47 eventos externos. É uma média seis vezes maior do que quando era somente ministra-chefe da Casa Civil. O que mais chama atenção, porém, é o ingrediente eleitoral de suas aparições. Solenidades sem pitadas eleitoreiras, implícitas ou explícitas, são cada vez mais raras. Ao lado de Lula, em inaugurações de obras ou eventos públicos, Dilma já ouviu o povo gritar seu nome em coro. Foi durante a entrega de apartamentos populares no Rio de Janeiro, há pouco mais de um mês. A aclamação ocorreu depois de Lula, no mais explícito caso de evento transformado em comício, ter dito que ele e Dilma iriam ganhar a eleição de 2010. A ministra também usou a inauguração de uma barragem em Minas Gerais para atacar a oposição e, recentemente, foi chamada de "a cara do cara" por José Sarney no lançamento de uma obra no Maranhão. Colocar a panela no fogo antes do prazo legal tornou-se um bom negócio no Brasil principalmente porque a prática costuma ficar impune. A pena máxima por aqui é a redução de tempo na televisão quando a campanha começa de verdade. Enquanto na Inglaterra a punição pode chegar à perda do cargo, no Brasil, quando muito, paga-se multa. Autuado em 2006 por campanha antecipada, o presidente Lula foi multado em 900 000 reais, mas até hoje discute o papagaio na Justiça. Desde o início do ano passado, o TSE já recebeu onze denúncias de campanha antecipada, todas movidas pela oposição contra Lula, Dilma e o PT. As cinco ações julgadas até agora foram arquivadas. Criticado pelo presidente do STF, Gilmar Mendes, que acusou a Justiça Eleitoral de ser muito dura com políticos inexpressivos e leniente com as altas autoridades, o TSE avisa que está atento aos abusos. "A linha que separa a prestação de contas da promoção é mesmo tênue", diz o presidente do TSE, Carlos Ayres Britto (veja entrevista abaixo). "Havendo provas, haverá punição." Em outras palavras, é preciso pegar muito pesado para ser punido. É o que parece estar ocorrendo agora com Lula e Dilma. "Está claro o clima de campanha. Se eu ainda estivesse no tribunal, recomendaria uma postura à altura do cargo que eles ocupam", disse a VEJA um ex-ministro do TSE. O debate sobre propaganda pessoal em eventos oficiais tem mais de um século no Brasil. Em 1914, Rui Barbosa, então senador, entrou na Justiça contra o governo do marechal Hermes da Fonseca (1910-1914). Ele queria anular a ordem que proibia a veiculação de discursos da oposição. Rui Barbosa alegava que divulgar os atos realizados durante o mandato é uma maneira de prestar contas e aproximar a sociedade dos debates políticos. Essa premissa está implícita no artigo 37 da atual Constituição Federal. Ele determina que a publicidade dos atos do governo deve existir sem que isso caracterize promoção pessoal. Mas, como mostra a campanha que Lula e Dilma têm feito país afora, há uma diferença enorme entre prestar contas e utilizar o governo para propagandear seus feitos em clima de comício. Agora mesmo, o governo acaba de enviar um ofício a prefeitos de todo o país com uma ameaça tipicamente eleitoral. A pretexto de instruir sobre o recadastramento no Bolsa Família, o programa que beneficia quase 50 milhões de brasileiros, o Ministério do Desenvolvimento Social adverte que, em 2011, quando Lula não for mais presidente, o programa poderá ser alterado. Puro terrorismo eleitoral. O caso deve render a 12ª acusação de campanha fora de época contra o governo. É evidente que a antecipação do debate eleitoral é uma prática que não começou no governo Lula nem está restrita às hostes petistas. O tucano José Serra, provável adversário da candidata de Lula, também vem cumprindo uma agenda que transcende sua função de governador de São Paulo. Embora não tenha chegado ao ponto de falar em eleições em inaugurações públicas, Serra foi a Petrolina, no interior de Pernambuco, em outubro passado. Queria avaliar as condições de dois projetos concebidos durante a Presidência de Fernando Henrique Cardoso e hoje abandonados pelo PT. O tucano também colocou no ar, em rede nacional, um comercial da Sabesp, estatal paulista de saneamento e água. A peça foi retirada de circulação depois de uma recomendação do Ministério Público de São Paulo. Reação muito diferente tem sido adotada por Lula. Criticado por seus comícios em eventos do governo, o presidente não pretende domar seu ânimo eleitoreiro. Lula discute campanha eleitoral o tempo todo, até em reunião com ministros. "Olha, Dilma, está tudo melhorando para nós. Vamos continuar trabalhando para a popularidade subir ainda mais", disse Lula a Dilma, na semana passada, na frente de cinco ministros. Fazer omelete é um direito de todos. Conservar os ovos intactos, dependendo do caso, é proeza para ser apurada com mais rigor. Tem dado tudo errado. Um ano após assumir o cargo mais poderoso do planeta, o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, viu sua popularidade despencar de um patamar lulista (78%) para um índice chavista (51%). A queda de 27 pontos é recorde para presidentes americanos em primeiro mandato. Os americanos, como é comum nas democracias, têm todo o direito de reclamar do governo Obama. Eles só não podem reclamar que não sabiam o que Obama faria caso fosse eleito. Durante mais de um ano de campanha, com discursos, palanques e festividades, o democrata expôs em minúcias seus planos de governo. Agora, talvez numa demonstração do humor ciclotímico dos americanos, Obama está impopular porque faz exatamente o que prometeu durante a campanha eleitoral. Como prometeu, está tentando aprovar alterações substanciais na saúde pública americana. Como prometeu, está investindo maciçamente dinheiro dos contribuintes na infraestrutura do país, numa tentativa de pôr fim à recessão que azedou o humor da população. Como prometeu, por fim, está concentrando os esforços bélicos e o orçamento do país no Afeganistão, atrás dos terroristas da Al Qaeda. Na democracia americana, cumprir promessas de campanha pode ser um problema.Omelete sem quebrar ovos
É o equivalente culinário de fazer campanha eleitoral sem parecer
que está pedindo votos. Orientada pelo chef Lula, Dilma vai cozinhando
o TSE e subindo nas pesquisas
Gustavo RibeiroA CAMPANHA NA TV
A ministra Dilma Rousseff tenta fazer uma omelete no programa
de Luciana GimenezJoselito Menezes DE OLHO NO INTERIOR
O governador de São Paulo,
José Serra: viagens ao Nordeste
e propaganda do governo
em todo o país
A cozinha da sucessão tem funcionado a pleno vapor fora de época graças a um caldeirão de ingredientes bem brasileiros. O principal deles é a debilidade das regras eleitorais. Em seu artigo 36, o Código Eleitoral diz que "a campanha eleitoral só é permitida depois de 5 de julho". Ao resumir numa frase um tema complexo, a lei transfere ao juiz a tarefa de diferenciar campanha de ato de governo. Deveria ser uma coisa simples. Não é. A Justiça, como regra, só costuma admitir a campanha antecipada em caso de candidaturas já oficializadas. Parece óbvio, já que, sem candidato, é impossível haver campanha. Mas a lógica cartorial produz consequências preocupantes. Para evitar a fiscalização da Justiça e minimizar o escrutínio público, a maior parte dos candidatos posterga ao máximo o anúncio de seus planos eleitorais, como vêm fazendo a ministra e seu principal adversário, o tucano José Serra. No caso deles, que ocupam cargos no Executivo, a data-limite é 3 de abril. Quem não ocupa cargos assim, porém, pode estender o prazo até 30 de junho. O resultado, em ambos os casos, é que a legislação brasileira, em vez de expor os candidatos à luz do sol por mais tempo, acaba escondendo-os. É um princípio frontalmente oposto ao que ocorre em democracias mais avançadas, como os Estados Unidos. Lá, em vez de três meses, a campanha eleitoral dura catorze meses, tempo suficiente para que se saiba quem é o candidato e o que ele pretende fazer caso seja eleito.Campanha de verdade