Saturday, February 06, 2010

Como e quando a depressão cede aos medicamentos

A depressão em preto e branco

Um novo livro compara o efeito dos antidepressivos modernos
com o de pílulas de placebo e chega à surpreendente conclusão
estatística de que eles se equivalem. Mas a complexidade
da mente e de suas doenças não se mede por números


Naiara Magalhães e Daniela Macedo

Montagem com fotos de Ada Summer/Corbis/Latinstock

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De tempos em tempos, pesquisas e livros amparados em bases científicas mais ou menos sólidas são lançados com um mesmo propósito: revelar a verdade sobre a indústria farmacêutica. Segundo seus autores, os laboratórios enriquecem (e muito) vendendo remédios pouco (ou nada) eficazes. Há duas semanas, chegou às livrarias dosEstados Unidos The Emperor’s New Drugs: Exploding the Antidepressant Myth (O Império das Novas Drogas: Explodindo o Mito dos Antidepressivos, em tradução livre), do psicólogo americano Irving Kirsch. Em 226 páginas, ele tenta provar que a bilionária indústria dos antidepressivos foi construída e se mantém graças ao efeito placebo. Ou seja, milhões de pessoas ao redor do mundo gastam 20 bilhões de dólares todos os anos em remédios cuja eficácia equivale à de um comprimido de farinha. Ao longo dos últimos quinze anos, Kirsch fez a compilação de 57 estudos sobre o tratamento de pacientes deprimidos. Pela fria análise das estatísticas, a teoria do psicólogo soa (de fato) como uma bomba e pode levar à perigosíssima conclusão de que o tratamento da depressão dispensa a ajuda dos medicamentos. "Há casos em que o antidepressivo é imprescindível para tirar o paciente do estado de letargia típico da doença, fornecendo-lhe energia para lutar contra ela", diz a psiquiatra Fernanda Martins Sassi, do Hospital das Clínicas de São Paulo. Deixada a seu próprio curso, a depressão machuca, incapacita para as atividades cotidianas, destrói laços afetivos, solapa a autoestima e pode culminar em suicídio.

O primeiro passo de Kirsch rumo ao que ele julga ser a explosão do "mito dos antidepressivos" foi o artigo "Listening to Prozac but hearing placebo" ("Ouvindo o Prozac, mas escutando placebo"), publicado em 1998, na revista Prevention & Treatment, da Associação Americana de Psicologia. Aqui, um parêntese. O título do trabalho tem um quê de provocação, uma espécie de resposta ao best-seller Ouvindo o Prozac, do psiquiatra americano Peter Kramer, sobre as benesses do antidepressivo tido como a "pílula da felicidade". A partir da metanálise de dezenove pesquisas, com 2 300 pacientes diagnosticados com depressão, Kirsch chegou à conclusão de que apenas 25% da melhora obtida com antidepressivos está associada à substância ativa do remédio. O restante deve-se em grande parte ao efeito placebo – e, em menor escala, à evolução da doença. Em 2002, Kirsch juntou outros 38 estudos ao trabalho anterior. Com a nova compilação, o índice de eficácia proporcionado pelos antidepressivos caiu para 18%. Seis anos mais tarde, o psicólogo reconheceria a superioridade dos medicamentos de verdade para os casos de depressão muito grave. Mas, ainda assim, a vantagem dos antidepressivos sobre o placebo seria pequena (veja o quadro).

Na realidade, as metanálises de Kirsch não revelam nenhuma novidade. O efeito placebo é conhecido e descrito desde o século XVIII e não pressupõe apenas a administração de uma substância inerte. Um médico atencioso, um exame diagnóstico e o otimismo do doente em relação ao tratamento contribuem sobremaneira para a sua recuperação. Quanto maior o componente psicológico de um distúrbio, maior será a sua suscetibilidade ao efeito placebo. Como tal, a depressão não escapa à regra. Os mecanismos biológicos envolvidos no efeito placebo ainda não foram completamente compreendidos, mas uma das hipóteses mais aceitas é que ele seria deflagrado pela liberação de endorfina, um analgésico produzido pelo próprio organismo, e de dopamina, substância capaz de fazer o cérebro repetir processos prazerosos – como a melhora de uma doença.

No caso da depressão, a cascata química desencadeada pelo efeito placebo atua diretamente nos mecanismos psíquicos que estão na origem da doença – a autoestima do paciente, suas expectativas em relação à vida, sua disposição física e mental... "O efeito placebo tem eficácia terapêutica", diz o neurocientista Renato Sabbatini, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Portanto, é difícil, sobretudo no campo da psiquiatria, determinar com precisão o que é resultado da intervenção química do remédio e o que é produto de seu efeito placebo. Escreve o médico canadense Grant Thompson, no livro The Placebo Effect and Health(O Efeito Placebo e Saúde): "O efeito placebo não é um inimigo". Em entrevista a VEJA, o psicólogo Kirsch defende: "Eu concordo plenamente que o efeito placebo é importante. Mas, se um remédio apenas evoca o efeito placebo, não deveria ser usado".

Não é o caso dos antidepressivos. Nove especialistas ouvidos por VEJA, entre psiquiatras, neurocientistas, farmacologistas e psicanalistas, são peremptórios em dizer que uma diferença de eficácia da ordem de 18% ou 25% entre a ação de um medicamento e a do placebo não é pouca coisa. "Para um deprimido grave, é o que pode fazer toda a diferença", diz o psicofarmacologista Elisaldo Carlini, professor da Universidade Federal de São Paulo. Descobertos nos anos 50, os remédios contra a depressão têm por objetivo restabelecer a química cerebral de modo a que as pessoas consigam enfrentar a vida cotidiana e seus problemas. Imagine um par de óculos com as lentes embaçadas... O antidepressivo é aquele pedacinho de pano usado para limpá-las, desanuviando a mente. "Nos casos mais graves, o remédio funciona como um curativo, que protege a ferida", explica a psiquiatra Laura de Andrade, da Universidade de São Paulo. "Com ele, o doente consegue seguir o dia a dia sem se machucar ainda mais."

A mais comum das doenças psiquiátricas, a depressão ainda desafia a medicina. Suas origens biológicas e suas causas não foram totalmente desvendadas. Até pouco tempo atrás, acreditava-se que a doença surgia da carência no cérebro de neurotransmissores, associados às sensações de prazer, autoconfiança, apetite e libido, entre outras. A hipótese mais aceita hoje é a de que a depressão está ligada ao mau uso que o cérebro faz de tais substâncias (veja o quadro). O tratamento também não é simples. Ao contrário. Há de se levar em conta os vários tipos de depressão e as inúmeras substâncias antidepressivas no mercado – há pelo menos sessenta delas à venda no Brasil. Descobrir o medicamento mais adequado a cada paciente é um trabalho, na maioria dos casos, de tentativa e erro. Apenas 37% dos doentes encontram alívio com o primeiro remédio prescrito por seus médicos. "Nos estudos que serviram de base às metanálises de Kirsch, é possível, por exemplo, que pacientes incluídos em pesquisas com inibidores seletivos de recaptação de serotonina reagissem melhor a outras classes de antidepressivos", diz o psiquiatra Valentim Gentil Filho, da Universidade de São Paulo. Além disso, pacientes com quadros depressivos semelhantes podem responder de forma completamente distinta a um mesmo tratamento. Por causa de tamanha complexidade, fica difícil tomar ao pé da letra os resultados das análises feitas por Kirsch. As nuances do tratamento da depressão são, em geral, mais bem compreendidas na prática clínica que nas revisões estatísticas.

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