A tragédia em Angra dos Reis
Todos os anos, chuvas de verão derrubam pontes, fecham estradas, deixam milhares de brasileiros desabrigados, matam. Em seguida, autoridades partem em romaria para os locais afetados, fazem discursos compadecidos e prometem verbas ou obras emergenciais, como se tivessem sido colhidas de surpresa pela catástrofe. Desta vez, 126 pessoas morreram no Rio de Janeiro, em São Paulo e no Rio Grande do Sul, os estados mais atingidos. O número de desabrigados passa de 3 000, e 39 municípios decretaram estado de emergência ou calamidade pública. Entre eles, Angra dos Reis é o caso mais dramático e, também, o retrato mais preciso do conjunto de fatores que desencadeia esse tipo de tragédia. Ali, morreram 52 pessoas, na virada do ano, vítimas de deslizamentos de encostas. Tudo era previsível. Na bela região em torno da Baía de Angra, com suas 365 ilhas e mais de 2 000 praias, chove quase o dobro da média do Rio de Janeiro, e a instabilidade das encostas é conhecida. Em 2002, 39 pessoas morreram em Angra num deslizamento com características semelhantes às de agora. Apesar disso, nunca foi feito um mapa geológico para verificar quais terrenos são impróprios para construção. A ocupação do solo é regida por regras municipais, estaduais e federais que se sobrepõem, e ninguém as cumpre. Como se não bastasse, existe um impressionante histórico de corrupção nos órgãos responsáveis pela fiscalização em Angra. É verdade que, do começo de dezembro até a primeira semana de janeiro, caiu o dobro de água do que se esperava. Foi o maior índice em dez anos. Só nos dois últimos dias de 2009, desabaram sobre Angra 220 bilhões de litros de água, o suficiente para encher 116 000 piscinas olímpicas. Mas não é essa a principal explicação para o que aconteceu na cidade, que experimentou um vertiginoso crescimento populacional a partir dos anos 1970. A construção da Rodovia Rio-Santos aumentou o fluxo de turistas, e grandes obras, como a usina nuclear de Angra 1, levaram multidões de trabalhadores à região. A população do município, que era de 40 000 habitantes na década de 70, dobrou em 1990 e triplicou em 2000, quando 5,5% já moravam em favelas. É um crescimento de quase três vezes a média brasileira no período. E num local onde o problema de espaço é crônico. Espremida entre a serra e o mar, a cidade não tem para onde crescer. Casas e casebres foram se aglomerando no pé dos morros e, quando não havia espaço, em cima deles. Hoje, 60% dos moradores vivem em áreas de encosta. E as características do relevo da região tornam tudo mais perigoso (veja o quadro). A tragédia expôs os problemas de um dos destinos mais visitados do país. Angra recebe 1,2 milhão de turistas por ano. Durante o verão, 3 milhões de reais diários entram na economia local, graças ao turismo. De Tom Cruise a Madonna, as celebridades internacionais também costumam bater ponto por lá. Cerca de 100 000 estrangeiros passam anualmente pela cidade. No réveillon, Pierre Sarkozy, filho mais velho do presidente da França, estava entre os hóspedes da Ilha dos Porcos Grande, do cirurgião plástico Ivo Pitanguy. A chuva causou dois deslizamentos de terra, que abriram um gigantesco clarão na propriedade. "Em quarenta anos na ilha, nunca vimos nada parecido", diz Helcius Pitanguy, filho do cirurgião. Não é a chuva que mata, mas o descaso. E ele é nacional. Dos 645 milhões de reais previstos no Orçamento da União em 2009 para ações de prevenção de desastres, apenas 135 milhões foram utilizados. Para o Rio de Janeiro estavam previstos 160 milhões de reais, mas foi empregado menos de 1% do total. O Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT), responsável pela manutenção da estrada Rio-Santos, estava licitando no ano passado obras para contenção de onze pontos críticos da rodovia, que vive interrompida por queda de barreiras. Com as chuvas, caíram 34 pontos. Como se não bastasse a pífia execução do Orçamento, gasta-se mal. Em 2009, o país destinou dez vezes mais em ações de resposta a desastres do que em programas de prevenção. No mundo civilizado, são tomadas providências para que a população viva segura em locais onde as condições naturais são adversas. Resta saber até quando o Brasil vai preferir pagar a conta dos desastres anuais. Este último já custa, por baixo, 1,2 bilhão de reais. Com reportagem de Ronaldo Soares e Silvia Rogar No último dia 5, parte de uma ponte de 314 metros sobre o Rio Jacuí, a 240 quilômetros de Porto Alegre, despencou. Entre vinte e trinta pessoas estavam sobre a estrutura de 132 metros que desabou. Três delas morreram. Outras duas ainda estavam desaparecidas na noite da sexta-feira. O governo gaúcho atribui o desastre à elevação das águas do Jacuí. Por essa versão, o rio subiu até a pista, que se partiu. Os sobreviventes dão outro testemunho. "As águas estavam 5 metros abaixo do concreto", diz o aposentado Élio Prade, de 57 anos. Erguida há 47 anos, a ponte já apresentara falhas de engenharia. Nos anos 70, seu vão central afundou, formando um enorme degrau. Seus alicerces não eram vistoriados havia três anos, e, dois anos atrás, os promotores estaduais começaram a apurar a negligência na manutenção da rodovia da qual ela faz parte. Na noite de 31 de dezembro, quando moradores da pequena São Luiz do Paraitinga, no interior de São Paulo, comemoravam o réveillon na praça principal, a garoa começou. Durante a madrugada, virou chuva grossa e, no início da tarde do dia 1º, o rio que corta o município, o Paraitinga, já transbordava. "Ele subia 50 centímetros a cada meia hora", lembra a prefeita Ana Lúcia Bilard Sicherle. Na madrugada do dia 2, com dezenas de casas submersas, a luz da cidade teve de ser desligada para que os botes de resgate pudessem circular com menos risco. A essa altura, o Paraitinga estava quase 10 metros acima do nível normal e, nas ruas, a enchente invadia até o 2º andar dos sobrados. Foi só no começo da tarde do dia 2, quando as águas finalmente começaram a baixar, que os 10 000 moradores de São Luiz do Paraitinga puderam ver toda a extensão da tragédia. O centro histórico, na parte mais baixa da cidade, parecia ter sido alvo de um bombardeio. Dezenas de casarões coloniais – construções de pau a pique e taipa do auge do período cafeeiro – foram ao chão. Estima-se que 25% do centro histórico tenha sido destruído. A Igreja Matriz de São Luiz de Tolosa desapareceu da paisagem. Mais de 2 000 moradores, um terço da população urbana, tiveram suas casas destruídas ou interditadas. Na semana passada, cinco dias depois do temporal, São Luiz ainda era só escombros. Bujões de gás podiam ser vistos em cima de telhados e carros se equilibravam por sobre os pedaços que haviam restado da igreja matriz, onde quase todo mundo na cidade se casou ou foi batizado. Praticamente só o que restou de São Luiz foram 1 000 toneladas de entulhos, que um vaivém de caminhões agora tenta recolher. A Igreja do Rosário, na parte alta do município, foi transformada em quartel-general, no qual centenas de pessoas, coordenadas por voluntários ao microfone, distribuem leite e alimentos aos desabrigados. Além da agropecuária, São Luiz do Paraitinga tinha no turismo uma de suas principais fontes de renda. A cidade era dona de um dos maiores conjuntos arquitetônicos tombados do Estado – mais de 400 de suas construções eram consideradas patrimônio histórico. Só no Carnaval, o lugar recebia 200 000 turistas, atraídos pelo charme de suas casinhas coloridas, suas ladeiras e bandas de música especializadas em marchinhas antigas. Apenas daqui a noventa dias se saberá quanto tempo e dinheiro serão necessários para reerguer o que a chuva destruiu. Sem praça, sem banda de música, e com tantos motivos para tristeza, São Luiz terá neste ano o seu Carnaval mais silencioso.Trágico, absurdo, previsível
Na virada do ano, os temporais de verão voltam a destruir e matar. Angra dos Reis, a cidade mais atingida, é a síntese de um drama brasileiro que tem como protagonistas o descaso das autoridades e a falta de infraestrutura
Marcelo BortolotiAndré Luiz Mello/Ag. O Dia A POUSADA SANKAY (acima, à esq.) antes da noite de réveillon, quando foi soterrada por uma avalanche
que matou 31 pessoas na Enseada do Bananal (foto grande): embora deslizamentos sejam frequentes,
não há mapeamento geológico da região• Quadro: Por água abaixo Ana Branco/Ag. O Globo ESPANTADO, GOVERNADOR?
Sérgio Cabral no Morro da Carioca,
onde morreram 21 pessoas:
providências atrasadas
Na Enseada do Bananal, na Ilha Grande, morreram 31 pessoas soterradas. Elas estavam na pousada Sankay e em cinco outras residências engolidas por uma avalanche na madrugada do dia 1º. A pousada tinha licença de funcionamento da prefeitura, mas não a licença ambiental do estado. Mesmo se tivesse, o risco de deslizamento da encosta não teria sido analisado. As casas atingidas no Morro da Carioca, no centro de Angra, onde morreram 21 pessoas, tampouco tinham licença. Antes da tragédia, porém, a prefeitura dispunha de um programa para levar saneamento e iluminação pública para aquela área, como se não houvesse um grave problema de segurança. Em Angra sempre foi mais fácil construir e depois conseguir licença, fosse por acordo, fosse simplesmente comprando uma autorização. Entre 2006 e 2007, 44 funcionários da prefeitura de Angra, do governo estadual e do Ibama foram presos por vender pareceres técnicos favoráveis às construções. A situação chegou a tal ponto que, em junho do ano passado, o governador Sérgio Cabral assinou um decreto autorizando retroativamente a construção em áreas que antes não eram edificáveis na zona de proteção ambiental, como se legalizar o que foi feito na marra fosse solução. Cabral, aliás, não visitou a região imediatamente, como era seu dever.Não foi o rio que derrubou a ponte
Jefferson Bernades/AFP
Igor Paulin, do Rio Grande do SulTrês séculos de história escorreram em poucas horas
Roosevelt Cassio/Reuters DESTRUIÇÃO
Cerca de 25% do patrimônio colonial de São Luiz do Paraitinga foi destruído
e um terço dos moradores perdeu suas casas
Laura Diniz, de São Luiz do Paraitinga