Friday, January 01, 2010

Suriname Conflito entre garimpeiros brasileiros e quilombolas

Terror no Suriname

Para vingarem um assassinato cometido por um
brasileiro, os assustadores maroons promoveram
uma onda de saques, estupros e espancamentos


Leonardo Coutinho

Hugo Den Boer/Reuters
RASTRO DE DESTRUIÇÃO
À esquerda, hotel queimado pelos maroons em Albina. Acima, o desembarque no Brasil de um grupo de garimpeiros que sobreviveram à noite de violência no Suriname


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O surinamês Wilson Apensa sempre foi um encrenqueiro. Na véspera do Natal, arrumou três brigas em Albina, cidade que fica a 150 quilômetros da capital, Paramaribo. Acostumado à violência (colecionava passagens pela polícia por furto, assalto e lesão corporal), saiu-se vitorioso de todas as contendas. Por volta das 20 horas, Apensa iniciou o quarto tumulto. Aparentando estar drogado, entrou na churrasca-ria Espetinho, onde um grupo de garimpeiros brasileiros estava reunido. Aproximou-se de um deles, agarrou-o pela camisa e deu-lhe um soco no rosto. O agredido, identificado como Adil-son Oliveira, reagiu. Puxou uma faca que trazia na cintura e cravou-a no coração do surinamês. Em seguida, fugiu. A morte de Apen-sa, pertencente ao grupo étni-co dosmaroons (descendentes de escravos afri-canos), causou uma correria no vilarejo. Comerciantes fecharam seus estabelecimentos e os garimpeiros se refugiaram no hotel onde estavam hospedados. Todos sabiam do risco de retaliação por causa do comportamento tribal dos integrantes da etnia à qual Apensa pertencia.

Conhecidos no país por seu primitivismo, os maroons costumam vingar a morte de membros do grupo com uma reação descomunal. Pelo menos 300 deles, armados com porretes, facões, machados e pedras, tomaram as ruas de Albina. Supermercados foram saqueados e o hotel onde estavam os brasileiros foi invadido. Os hóspedes foram espancados e as dependências, incendiadas. Um posto de combustíveis ficou em cinzas e seis automóveis e um caminhão foram consumidos pelas chamas. Mais de uma centena de brasileiros foi atacada. Alguns apanharam de porrete, muitos foram apedrejados. Os maroons não pouparam nem as mulheres. Uma delas, grávida, perdeu o bebê depois de ter a barriga perfurada por um facão. Outras dezenove afirmam ter sido estupradas pela turba enfurecida. Dois casos foram confirmados pela polícia local. Os demais estão sob investigação.

Antonio Milena
COMÉRCIO DE OURO:
o sonho de riqueza que atraiu 18 000 brasileiros ao Suriname


A maranhense E., de 34 anos, estava nesse grupo. Ela relatou a VEJA o terror que viveu: "São uns animais. Deram tapas no meu rosto, arrancaram minha roupa, me beijaram à força e morderam meus seios". Ela estava no hotel invadido pelos maroons. Ao ouvir a gritaria do lado fora, E. trancou-se em seu quarto, mas, quando percebeu que haviam ateado fogo ao prédio, passou a gritar por ajuda. Os maroons a ouviram e arrombaram a porta. Ela foi violada e atirada nua para fora do prédio. A selvageria se estendeu pela madrugada e deixou um saldo oficial de 25 feridos graves - um deles ainda corre o risco de ter o braço amputado. "Só não morri porque me joguei no rio no meio da noite e nadei até sair da cidade", conta o paraense Reginaldo Serra, um garimpeiro de 30 anos. Hoje, há 18 000 brasileiros vivendo no Suriname. São, basicamente, prostitutas e garimpeiros que tentam a sorte em lavras de ouro mais produtivas que as existentes do lado de cá da fronteira. Depois da selvageria em Albina, a FAB mobilizou-se para retirar os brasileiros que querem sair do Suriname.

Os maroons formam o terceiro grupo étnico mais numeroso daquele país - só perdem para os imigrantes indianos e javaneses. Eles descendem de escravos negros que nos séculos XVII e XVIII fugiram de fazendas na região litorânea e se refugiaram nas florestas do interior. Ali retomaram aspectos da cultura africana e passaram a viver como seminômades e coletores. Como o interior não era habitado, tornaram-se senhores das florestas. Hoje, os maroons controlam 80% do território do país. Por terem se organizado à margem do estado surinamês, recusam-se a obedecer às leis nacionais. Alimentam a ideia de que são donos da terra desbravada por seus ancestrais e usam a força bruta para rechaçar aqueles que julgam invasores. "Essa gente vive como há 200 anos", diz o delegado brasileiro José Roberto da Hora, adido da Polícia Federal na embaixada brasileira em Paramaribo. Nas estradas sob seu domínio, eles cobram pedágio de 50 dólares por carro que passa. Os principais alvos são os garimpeiros brasileiros.

O comportamento bizarro dos maroons faz parte do quadro de completo desgoverno que assola o Suriname. O país foi o último do continente a se tornar independente, há apenas 34 anos, e, ainda assim, a contragosto. Os surinameses não queriam romper os laços com a antiga metrópole, a Holanda. Para convecê-los da própria independência, o país ofereceu um acordo comercial vantajoso. Eles pediram, e levaram, livre acesso ao porto de Roterdã, o maior da Europa. As mercadorias que saem do Suriname, ou as que são enviadas para lá, não podem ser vistoriadas pelas autoridades holandesas. Com isso, o país tornou-se um paraíso do crime organizado. Contrabandistas e narcotraficantes utilizam a conexão Paramaribo-Roterdã em escala industrial, como VEJA mostrou em janeiro de 2007 na reportagem "O Paraguai do norte". Para completar o quadro, 10% do território surinamês, o Triângulo New River, está sob litígio internacional (é reivindicado pela Guiana). Um acordo foi feito entre os dois países e nenhum deles pode policiar a zona. É uma terra entregue à própria sorte. Segundo a Polícia Federal brasileira, a área está infestada de gângsteres russos e chineses. Além disso, guerrilheiros colombianos das Farc vão até lá para trocar cocaína por munição vinda da Líbia. Esse triângulo barra-pesada faz fronteira com o Brasil, mas felizmente é isolado por uma cadeia de montanhas conhecida como Serra do Tumucumaque. Comparadas ao Suriname, enfim, as favelas cariocas são seguras como Zurique.

O lado Suriname do Brasil

Fotos reprodução e Dida Sampaio/AE
CRIMES NO GARIMPO
A exploração ilegal de diamantes segue ativa em Rondônia, apesar da proibição. Em 2004, os cintas-largas mataram 29 garimpeiros


Engana-se quem pensa que a atividade do garimpo é parte do passado em nosso país. Assim como há milhares de brasileiros vivendo no Suriname atrás do sonho de encontrar ouro, outros tantos continuam buscando pedras preciosas na Amazônia. Na maioria das vezes, eles provocam grandes desastres ambientais para tentar encontrar as gemas. O exemplo mais impressionante vem do garimpo de diamantes da reserva indígena Roosevelt, em Rondônia. Oficialmente, o garimpo está fechado desde 2004, mas a foto acima, feita há duas semanas, mostra que a extração de pedras segue a pleno vapor. A terra pertence aos índios cintas-largas. Em 2004, eles assassinaram 29 garimpeiros que trabalhavam no local. A matança obrigou o governo brasileiro a atuar sobre uma questão que vinha sendo ignorada: apesar de terem o usufruto das terras, os índios não são donos das riquezas do subsolo, que pertencem à União. Essa regra vale para qualquer cidadão brasileiro. Como a jazida não podia ser explorada pelos indígenas, o governo decidiu fechar o garimpo e destacou a Polícia Federal para garantir que a determinação fosse cumprida.

A PF instalou postos nas vias de acesso à aldeia dos cintas-largas, para evitar a pilhagem dos recursos naturais e conter a violência. Mas basta um sobrevoo pela região, coisa que os policiais federais fazem rotineiramente, para constatar que a operação (que já custou 28,4 milhões de reais) não impediu a entrada na reserva de máquinas pesadas como caminhões, tratores e retroescavadeiras. É impossível não avistar as barracas de lona que servem de acampamento aos garimpeiros e o funcionamento das dragas que cospem lama sobre os rios. Como todos os caminhos estão interditados por barreiras policiais, é estranho que o transporte de maquinário pesado tenha passado despercebido aos agentes federais. Os índios afirmam que subornaram policiais para que eles permitissem a passagem das dragas - e que cobram pedágio dos garimpeiros que extraem diamantes.

O ritmo do avanço do garimpo sob as barbas das autoridades pode ser medido por meio de imagens de satélites. Entre 2007 e 2009, foram abertas treze clareiras nas terras dos cintas-largas. O estrago chega a 33 quilômetros quadrados - uma área equivalente a 4 000 campos de futebol. No mês passado, o procurador da República Reginaldo Trindade, amigo dos índios, enviou um ofício ao ministro da Justiça, Tarso Genro, em que reconhece a existência do garimpo de diamantes na reserva. Apesar de admitir que os índios e os garimpeiros violam a lei, ele sugere que o governo, em lugar de punir os responsáveis, recompense os índios com 7 milhões de reais por ano para que eles aceitem fechar o garimpo. Mas os índios nem pensam em desistir dos diamantes. Os cintas-largas sabem que dormem em cima de uma das maiores jazidas do planeta.

Mineradoras acreditam que, na região, haja pelo menos vinte kimberlitos - as formações rochosas de onde se extraem os diamantes - com potencial de produção de 30 bilhões de dólares em gemas por ano. Esse dinheiro, que, repita-se, é da União, não dos índios, nem dos garimpeiros, seria suficiente para quadruplicar o produto interno bruto de Rondônia. Mas, para alcançar esse potencial produtivo, a exploração teria de ser legalizada e realizada por meio de técnicas modernas, como ocorre no Canadá desde a década passada. Lá, também há diamantes em terras indígenas. No entanto, em vez de fechar os olhos para a existência de tal riqueza, o governo organizou sua exploração e paga uma compensação aos nativos. No Brasil, os cintas-largas poderiam deixar a miséria com o recebimento de royalties, e a devastação seria controlada. O problema é que estamos mais para Suriname do que para Canadá.

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