Saturday, January 30, 2010

A recepção negativa ao tablet da Apple

A NOVA MÁGICA DE JOBS

Quando Steve Jobs, o gênio da Apple, anuncia um novo
produto, o mundo espera uma revolução. Com o iPad,
não foi bem assim, mas é cedo para decretar seu fracasso


André Petry, de São Francisco

Paul Sakuma/AP
ADJETIVOS VIRAIS
Steve Jobs, ao exibir o iPad, na semana passada, depois de dois anos de especulações selvagens: "extraordinário", "fenomenal", "incrível"


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Os rumores começaram há dois anos. Criadora das mais fabulosas inovações tecnológicas recentes, a Apple estaria desenvolvendo um novo produto digital revolucionário. Primeiro, as especulações sobre a novidade tomaram os sites e os blogs de aficionados de tecnologia. Depois, transbordaram para todos os meios de comunicação, do Financial Times à CNN, do Wall Street Journal ao USA Today. No último mês, atingiram um ritmo selvagem. Seria um tablet, aparelho portátil maior do que um celular mas menor do que um netbook e perfeito para leitura de livros e jornais? Terá tela futurista de Oled (sigla em inglês para diodo orgânico emissor de luz), garantia um especialista. Poderá ser recarregado por um emissor de eletricidade sem fio, especulava outro. Vai sair com um sistema operacional inteiramente reescrito para ele, assegurava um terceiro. Como se chamaria? TabletMac, iSlate, iPad? Custaria 600 ou 1 000 dólares? Ninguém sabia nada ao certo, mas a aposta era uma só: Steve Jobs, o gênio fundador da Apple, estava criando outra vez um produto fenomenal, que viraria o mercado de cabeça para baixo e seria a salvação dos jornais, financeiramente asfixiados pela avalanche da internet. No dia 18 de janeiro, a Apple mandou um enigmático convite à imprensa, dizendo apenas que anunciaria sua "última criação" no dia 27 de janeiro, em São Francisco.

Os coraçõezinhos dos tecnófilos quase se arrebentavam de expectativa quando, na manhã da quarta-feira passada, Jobs, magérrimo, rescaldo de graves problemas de saúde, mas sorridente e disposto, apareceu no palco do centro de convenções onde habitualmente anuncia seus novos produtos, o Yerba Buena Center. Foi recebido com uma ovação de pé por uma audiência que, diante de outros capitães de indústria, demonstra apenas ceticismo. O grande comunicador não perdeu tempo: "Vamos começar 2010 com um produto realmente mágico e revolucionário". Mais emoção e expectativa solidamente assentadas nos números espantosos de desempenho da Apple. A empresa do logo da maçã mordida já vendeu mais de 220 milhões de iPods, 50 milhões de iPhones e 1 bilhão de programas, os aplicativos, para esses aparelhos transacionados remotamente por sua loja virtual, iTunes - que até o mês passado tinha comercializado 6 bilhões de músicas. Dois dias antes do lançamento do iPad, a empresa divulgou o maior lucro trimestral de sua história: 3,4 bilhões de dólares.

L.A. Cicero/Stanford
A VOLTA A STANFORD
Jobs, que nunca se formou na universidade, com toga de paraninfo: ele dormia no chão e filava a boia num templo hare krishna


Na imensa tela ao fundo do palco, apareceram a imagem e o nome da nova aposta da Apple, o iPad. Jobs exibiu o aparelho nas suas mãos, para dar noção do tamanho (semelhante ao de uma folha de ofício) e do peso (menos de 700 gramas). O pessoal aplaudiu, alguns assoviaram, outros gritaram - mas, aos poucos, enquanto Jobs pulava de um adjetivo a outro falando do iPad - "extraordinário", "fenomenal", "incrível" -, aconteceu algo até então inédito nessa segunda encarnação de Jobs na Apple (ele foi demitido, mas retomou o poder em 1996). A plateia aos poucos foi perdendo o entusiasmo, chegando a se perceber um clima de decepção - sensação realimentada pelos comentários instantâneos vindos dos blogs especializados. E a rapaziada desceu os tanques com a crueldade característica:

- Não tem tela de Oled? Esquece.

- Sentados ou deitados, usamos laptop ou desktop. Em pé, usamos o smartphone. Não existe uma posição anatômica ideal para usar o iPad.

- Não é nem um laptop simplificado nem um iPhone melhorado.

- Não roda Flash (formato popular de vídeos e animações), não tem câmera, a bateria é embutida... Eu não compro.

- É o iBad (o i-Ruim).

Aos poucos, a apresentação de Jobs começou a lembrar a de um mágico que, para obnubilação geral, já fizera desaparecer um cavalo no palco e agora provocava apenas bocejos entediados ao fazer sumir um elefante.

O produto em si não é novidade. A Hewlett-Packard, a Intel e a Dell já andam exibindo protótipos de tablets na praça. Para quem só quer ler livros digitais, há outras opções no mercado, como o Kindle, da Amazon, já disponível no Brasil. Diante de tudo o que se esperava, e se esperava nada menos que uma revolução, o iPad pareceu quase um blefe.

Divulgação
O TRUNFO DO SKIFF
O leitor digital da Marvell com tela de metal flexível chega ao mercado ainda neste ano nos Estados Unidos: barato e quase indestrutível

Como se sabe, não existe uma segunda chance de causar uma bela impressão inicial. Nisso nem Jobs dá jeito. Pouco importa que rumos tome sua carreira comercial daqui para a frente, o iPad será sempre lembrado pela fria recepção da semana passada. Pela genialidade de Jobs e pela história recente de sucessos da Apple, porém, o iPad merece um segundo e mais detido olhar. "Ainda tenho dúvidas, sobretudo em relação ao teclado virtual. Não sei se funciona teclar numa tela de vidro. Mas acho que o iPad será um sucesso. Só não acredito que vá se igualar ao fenômeno que foi o iPhone", diz John Markoff, veterano repórter de tecnologia do New York Times. Pode ser. Mas também pode ser que a maioria dos decepcionados esteja errada, e Steve Jobs, mais uma vez, esteja certo. Porque, quanto mais se examina o iPad, mais encantador ele parece. Ponto por ponto, ele já nasce como o melhor tablet do mercado. Graças a um chip desenvolvido especialmente para suas necessidades pela própria Apple, sua operação é veloz e consome menos bateria. Funcionando a todo o vapor com exibição de filmes em HD, por exemplo, a autonomia do iPad poderia chegar a quase cinco horas. A bateria dura dez horas em uso menos intensivo, segundo a Apple - pois nenhum dos resenhistas tecnológicos recebeu ainda o iPad para testes. A tela sensível, pelo que se viu no Yerba Buena, reage com agilidade bem maior ao toque do que as do próprio iPhone. A vantagem competitiva maior, porém, quando o iPad começar a ser vendido, em março, será o fato de o aparelho rodar os 140 000 programas disponíveis no iTunes para o iPhone.

Não se sabe como Jobs reagiu ao clima de decepção, mas é certo que, pela primeira vez, ele sentiu aquele gostinho amargo que tantas vezes passou pela boca de Bill Gates, o fundador da Microsoft. O pior momento público de Gates ocorreu há doze anos, quando, ao demonstrar uma novidade do sistema operacional Windows98, a tela do computador congelou e uma mensagem de erro apareceu. Para piorar, o evento estava sendo transmitido ao vivo pela CNN. Jobs teve seu momento Gates com o iPad. Ao acessar determinado site, apareceu na tela do iPad um quadradinho azul com um sinal de interrogação no centro. A plateia de especialistas entendeu tudo e riu meio envergonhada. Esse símbolo surge com frequência irritante quando, ao navegar pela internet pelo iPhone, o usuário encontra um vídeo no formato Flash, marca da Adobe universalmente consagrada na Web, mas que a Apple teima em não reconhecer para tentar empurrar goela abaixo dos usuários de Mac e iPhone seu próprio programa de vídeos, o QuickTime. Quando Jobs começa a ficar parecido com Gates, alguém sai perdendo - e esse alguém é o consumidor.

O modelo mais barato do iPad chegará ao mercado americano em março, por 499 dólares, e o mais caro, em abril, ao preço de 829 dólares. No Brasil, os primeiros modelos começam a ser vendidos só no segundo semestre deste ano. A questão central segue em aberto: o iPad salvará jornais e revistas americanos que andam desesperados atrás de um abrigo no mundo digital? ONew York Times, com a corda no pescoço, já se associou ao empreendimento e poderá ser lido no iPad assim que o produto chegar às lojas. O Times também anunciou que, no início de 2011, começará a cobrar por seu conteúdo na internet. Pode ser um indicativo de que o iPad virá a oferecer um novo meio de vender notícias, como o iTunes criou um novo modo de vender música.

Steve Jobs é um sobrevivente. Sua mãe biológica o entregou para adoção com a exigência de que os pais adotivos tivessem cursado a universidade. Um advogado e sua mulher se candidataram, mas, na última hora, desistiram. O bebê acabou na casa de um operador de máquinas e sua esposa. O casal não tinha nem o ensino médio. Quando soube, a mãe biológica quis cancelar a adoção, mas os novos pais prometeram que o menino ingressaria na universidade. Ele foi criado no Vale do Silício, que na época era apenas um imenso pomar de damascos e ameixas. Na escola primária, só queria ler livros e caçar borboletas. Era um aluno medíocre e, pior ainda, um projeto de delinquente. Não fosse pelo carinhoso suborno de uma professora - que o comprou com notas de 5 dólares e barras de chocolate -, Jobs diz que teria abandonado a escola. "Eu ia acabar na cadeia, com 100% de certeza." Em vez disso, chegou à universidade, mas desistiu em seis meses. Ficou pelo câmpus cursando só o que lhe interessava - caligrafia, por exemplo -, dormia no chão do quarto dos colegas, vendia garrafas de plástico de Coca-Cola para comprar comida e, aos domingos, filava o jantar num templo hare krishna. Está bilionário, mas trabalha como um iniciante e deve saber muito bem o que quer com o iPad.

Diz Tim Bajarin, presidente da Creative Strategies e analista de tecnologia: "Com o iPad, Jobs reinventou o conceito de portabilidade". Aqui e ali, depois de murmúrios de decepção, começam a surgir avaliações positivas. Pode ser que esteja acontecendo, mais uma vez, a mágica de Jobs.

Os concorrentes

Modelos de tablets que vão disputar o mercado com o iPad da Apple


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