Saturday, January 16, 2010

Entrevista: Morgan Freeman


"Não sou um ícone negro"

Um dos mais admirados atores americanos, Freeman, que interpreta
Nelson Mandela no filme Invictus, afirma que não quer ser considerado
exemplo nem modelo só por ter sucesso


Isabela Boscov

Rick Maiman/AP
"Não sou intelectual, mas intuitivo.
Pego as coisas da página, do roteiro.
E se eu não pegá-las lá não há diretor
que me faça entendê-las"



Morgan Freeman, de 72 anos, é um dos mais admirados atores americanos das últimas décadas – e um dos primeiros negros a usufruir de prestígio e sucesso entre todas as parcelas do público, sem distinção de cor. Assim, embora rejeite peremptoriamente o papel de liderança política ou racial, Freeman pouco a pouco se envolveu de maneira discreta, mas decidida, com as transformações no continente africano. Já perdeu a conta de quantas vezes o visitou. Pela África do Sul, em particular, nutre um interesse especial desde o início da década de 90, quando se encerrou o regime hediondo do apartheid e o líder negro Nelson Mandela foi libertado depois de 27 anos de encarceramento – para então, em 1994, eleger-se presidente do país no seu primeiro pleito democrático e promover uma política de conciliação entre brancos e negros que o tornaria um ícone não apenas africano, mas mundial. O ator conviveu com Mandela em diversas ocasiões, e teve o interesse correspondido: certa feita, quando indagaram ao então presidente quem deveria interpretá-lo no cinema, ele respondeu, sem hesitação: "Morgan Freeman". Portanto, quando decidiu rodar Invictus, que tem estreia prevista para o dia 29 e narra como Mandela fez da seleção sul-africana de rúgbi, até então um emblema do apartheid, um símbolo de união nacional, o diretor Clint Eastwood também não teve dúvidas: escalou para o papel de Mandela seu velho amigo Morgan Freeman, que conversou com VEJA, em Los Angeles, sobre a experiência.

Como o senhor compara a África do Sul que conheceu nos anos 90 ao país de hoje, em que filmou Invictus?
Visitei a África do Sul diversas vezes e estava lá no aniversário de 80 anos de Nelson Mandela, em 1998. Havia uma excitação, uma energia tão grande no ar que achei que o país iria explodir em produtividade e em mudança. Mas essa explosão não aconteceu. Thabo Mbeki (que sucedeu a Mandela na Presidência) não soube aproveitar essa vantagem. Era um homem bom e preparado, mas não era estadista o bastante. Tendo em mente não apenas os sul-africanos, mas toda a África, já que o continente está atrelado de várias maneiras ao que se passa no país, torço para que Jacob Zuma, o atual presidente, saiba tirar partido desse dinamismo que ainda existe lá.

E quanto às relações entre negros e africâneres, como o senhor as percebeu hoje?
Numa simples visita à África do Sul, a impressão é que as relações raciais são tomadas muito às claras. Os próprios sul-africanos me relatam uma outra história, de que ainda existem diferenças e rancores intransponíveis. Creio que o crucial é que o fator econômico tinge fortemente as relações entre brancos e negros. Desde o fim do apartheid, as desigualdades foram postas completamente a nu – e o déficit de educação, emprego e moradia entre os negros era, e é ainda, tão acentuado que mesmo que tudo houvesse caminhado de maneira ideal seria impossível ter tornado as oportunidades compatíveis em um espaço tão breve de tempo. Quinze anos não bastam. Serão necessárias pelo menos três gerações para que mudanças apreciáveis nas relações raciais se enraízem.

A ideia de perdão foi central ao governo de Nelson Mandela – e, como mostra Invictus, não foi uma ideia facilmente aceita na África do Sul pós-apartheid. O senhor também crê que perdoar é difícil?
Bem mais difícil que perdoar, na minha opinião, é esquecer. Você pode perdoar uma falta cometida contra você – mas é improvável que consiga extirpá-la de sua lembrança. São, acho eu, coisas muito diferentes. Não que seja um exercício fácil. O perdão, como proposto por exemplo na África do Sul por Mandela, significa riscar uma linha separando o presente e o futuro das faltas passadas e determinar que não se voltará para trás dessa linha. Que aqueles erros não serão repetidos.

"Esquecer é bem mais difícil que perdoar. O que não torna o perdão um exercício fácil. O perdão, como Mandela o propôs na África do Sul, significa riscar uma linha separando o presente e o futuro das faltas passadas e determinar que não se voltará para trás dessa linha, e que aqueles erros não serão repetidos"


Mandela lhe disse por que o considerava o ator ideal para interpretá-lo?

Porque sou bom, ora.

Algo mais específico?
Brincadeiras à parte, não creio que seja melhor do que tantos outros atores negros que poderiam ter feito o papel. Mas talvez me pareça mais com Mandela, fisicamente, do que a maioria.

Como o senhor avalia sua atuação?
É um desafio interpretar alguém que todos conhecem. A dúvida é: serei eu capaz? Ou terminarei constrangendo a mim e a todos os demais envolvidos? Ainda não assisti aInvictus, porque sei que quando o fizer vou julgar que falhei na tarefa. Prefiro então ouvir dos outros que me saí bem.

Em que aspectos o senhor crê ter falhado?
Quando me vejo em um filme, isto é tudo que eu consigo ver: eu mesmo. Não o personagem.

O que primeiro o interessou nessa carreira, então?
Subi em um palco aos 8 anos, e instantaneamente a decisão estava tomada. Minha professora do 3o ano perguntou à minha mãe se poderia me recrutar para uma pecinha da escola. Minha mãe disse "pode levá-lo!" – finalmente alguma outra plateia que não ela para eu chatear com as minhas demonstrações de talento.

O que é mais difícil em interpretar personagens muito conhecidos: reproduzir seus maneirismos ou seus aspectos psicológicos?
Tudo é difícil. Cada pessoa tem suas nuances, seus pequenos gestos – mas eles não são simples atitudes físicas. São manifestações de quem essa pessoa é em seu interior. Mandela, por exemplo, não ouve as pessoas da maneira que nós ouvimos os outros. Você está aqui me ouvindo e olhando para mim, acompanhando os movimentos dos meus lábios, reagindo ao que eu digo. Mas, quando você conversa com Mandela, ele parece, como eu diria, ir para outro lugar. Se você tenta prender o olhar dele, ele não cede – vai embora e se recolhe em algum ponto de si mesmo. O escritor John Carlin (autor do livro em que Invictus se baseia, Conquistando o Inimigo – Mandela e o Jogo que Uniu a África do Sul, publicado aqui pela Sextante) diz que ele é uma esfinge: um homem muito quieto, muito composto, difícil de ler.

O senhor teve muitos encontros com Mandela, não?
Sim, tive muito acesso a ele, desde mil novecentos e noventa e qualquer coisa. Mas não é que eu tenha usado esse acesso como laboratório, no sentido em que a palavra seria empregada por um professor de arte dramática. Não sou o tipo de ator que precisa se conduzir até um determinado estado psicológico que o lance dentro do personagem. Cheguei à África do Sul cerca de uma semana antes do início das filmagens de Invictus, assisti a alguns videoteipes antigos de Mandela e, quando Clint Eastwood mandou rodar, abri a boca e pronto, aí saiu a minha versão particular de Nelson Mandela. Várias pessoas elogiaram essa minha versão, e decidi ficar com ela do jeito que estava.

De onde o senhor pensa que Nelson Mandela tirou a disciplina para a política do admitir e perdoar, depois de passar 27 anos encarcerado?
Acho que ele a tirou exatamente dos 27 anos que passou encarcerado. Foram quase três décadas pensando sobre uma pergunta: por quê? Ele é o tipo raro de homem que nessas circunstâncias, confinado a uma cela pequena e fria, se dedica a encontrar uma razão que confira algum sentido ao sofrimento – ao menos uma razão que pudesse satisfazer a ele.

Invictus
mostra como a Copa do Mundo de rúgbi, em 1995, foi utilizada por Mandela como um improvável foco de união entre brancos e negros. Por que o esporte pode ser um galvanizador tão poderoso, na sua opinião?

Porque uma arena de esportes é um campo de batalha. Mas, quando a guerra termina, todos ainda estão de pé – talvez um pouco machucados, com algum sangue derramado, mas vivos e capazes de saudar a batalha como justa.

Como Clint Eastwood, como diretor, conduziu o seu trabalho em um papel tão delicado?
Dizendo "ação". "Vá lá e faça." Nem adiantaria tentar outra coisa: não sou uma pessoa muito intelectual. Sou, ao contrário, intuitivo. Pego as coisas da página, do roteiro. E se eu não pegá-las lá não há diretor no mundo que me faça entender o que eu não percebi durante a leitura. É simples assim para mim.

O que o senhor espera de um filme no qual aceita trabalhar?
Que a plateia não peça seu dinheiro de volta na saída. Que ela tenha uma experiência instrutiva, se possível, mas antes de mais nada que ela se sinta entretida no espaço daquelas duas horas.

Significa algo quando dizem que o senhor é um dos melhores atores, se não o melhor, de sua geração?
Claro que significa algo. Muito pior seria ouvir que você deve voltar para a escola – quem sabe tentar outra coisa, ser encanador, por exemplo.

A mediocridade não seria pior que o fracasso?
A questão é que ninguém diz aos medíocres que eles são medíocres. As pessoas, neste meio, só se dão ao trabalho de fazer algum comentário olhando nos seus olhos se acham que você é o que há de melhor. Volto, assim, àquela posição de arrogância a partir da qual comentei o fato de Mandela ter escolhido a mim para interpretá-lo: a minha vida inteira, tive certeza de que interessava às pessoas me ver atuar. Sei que sou bom, porque desde o início ouvi isso das pessoas.

"Aceito ser um ator importante. Ser tido como importante em outras esferas da vida — isso não. Veja a celeuma em torno das infidelidades de Tiger Woods. Ele é um jogador de golfe, não um pastor. Ser um negro de sucesso automaticamente o torna um modelo de comportamento e autoriza que o julguem? Creio que isso está errado"


O senhor se tornou um dos primeiros atores negros de sucesso em Hollywood. Isso lhe dá orgulho?

Não tenho muita certeza de que queira sentir orgulho disso. Ser uma figura de importância acarreta responsabilidades enormes – que talvez eu não deseje, ou para as quais não seja talhado. Ser um atorimportante, isso eu aceito. Ser considerado importante em qualquer outra esfera da vida – isso não. Veja essa celeuma em torno das infidelidades conjugais de Tiger Woods. Ele é um jogador de golfe; não é um pastor de igreja, nunca andou por aí pregando como os outros deveriam ou não agir. Ser um negro de sucesso então o torna automaticamente um modelo de comportamento e autoriza qualquer um a julgar suas atitudes? Creio que está errado. Sei das falhas que tenho, e não quero de maneira nenhuma que me tornem um ícone, seja do que for. O primeiro papel pelo qual ganhei uma indicação ao Oscar, em 1987, foi o de um cafetão violento, em Armação Perigosa, e a-do-rei fazê-lo. Eu deveria então ter considerado se um personagem abjeto como esse é um exemplo adequado para outros jovens negros, ou se ficaria bem em minha biografia? De novo, creio que não. Não sou presidente, não sou Mandela e certamente não sou Deus, e não quero que apliquem tais parâmetros a mim.

Há uma parcela de importância, entretanto, que seria difícil ao senhor refutar: a de ter provado que é possível ter sucesso e prestígio em uma carreira em que as honras durante muito tempo estiveram fora do alcance de um negro.
Compreendo o apelo desse conceito, o de ser um negro importante no mundo. Mas, de novo, prefiro que não me cubram nem com essa importância nem com essa responsabilidade.

Blog Archive