Sunday, August 02, 2009

Exposição O mundo mágico de Marc Chagall

UM ARTISTA NO OLHO DO FURACÃO

Marc Chagall, o pintor que sobreviveu à revolução bolchevique
na Rússia e ao nazismo, tem sua obra extraordinária revista
numa mostra em Belo Horizonte


Marcelo Marthe

Fotos Divulgação
ÊXTASES VISUAIS As Núpcias, de 1918, e Farmácia em Vitebsk, de 1914 (à direita): cosmopolita
que manteve um pé na aldeia

VEJA TAMBÉM

Em três momentos históricos perigosos para um artista judeu, o pintor Marc Chagall esteve no olho do furacão – e escapou ileso. Ele nasceu numa família hassídica na cinzenta Vitebsk, atual Bielo-Rússia, no fim do século XIX, quando os judeus eram oficialmente discriminados pelo império czarista. Apesar desses obstáculos, lançou-se com sucesso na carreira artística. Mais tarde, ao se engajar na revolução bolchevique de 1917, chegou a clamar por um "banho de sangue purificador" e assumiu um cargo na administração comunista. Mas, tal como ocorreria com vários outros vanguardistas russos, o regime logo se voltou contra ele. Os animais surreais de suas telas desagradavam aos ideólogos de plantão. "Por que a vaca é verde? Por que o cavalo voa?", perguntavam. Chagall ainda se desgastaria numa polêmica pública com outro vanguardista, Kasimir Malevich, que, defensor radical do abstracionismo, questionou a validade da arte figurativa do colega. Desiludido, o pintor fugiu da Rússia pouco tempo depois – e o fim deprimente do próprio Malevich, proscrito pelo regime que ajudou a acalentar, dá uma ideia do que o esperava se ficasse. Chagall escapou, por fim, das garras de Adolf Hitler. Consideradas exemplos da "arte degenerada judia", suas obras foram destruídas na Alemanha nazista. Durante a II Guerra Mundial, ele e a mulher, Bella, fugiram da França ocupada com a ajuda de um funcionário do consulado americano em Paris. Esse artista extraordinário, cuja trajetória sintetiza as tribulações de seu tempo, é tema da mostra O Mundo Mágico de Marc Chagall – O Sonho e a Vida, que abre nesta terça-feira na Casa Fiat de Cultura, em Belo Horizonte.

O acervo de mais de 300 peças – entre óleos, guaches, aquarelas, esculturas e gravuras – cobre os aspectos fundamentais da vida longa de Chagall, que morreu em 1985, aos 97 anos. Ele foi um cosmopolita que sempre manteve os pés em sua aldeia. Nos anos 10, depois de viver em Paris no período áureo da agitação modernista, ele voltou a Vitebsk – e lá produziu suas telas mais preciosas. Da coleção da Galeria Tretiakov, de Moscou, vêm seis obras desse período. Entre elas há duas cenas da cidade natal pintadas em 1914, como a paisagem urbana de Farmácia em Vitebsk e Salão de Cabeleireiro, em que retrata um tio que tem seu cabelo cortado. Também se pode ver um testemunho de sua fase engajada: um estudo para os cartazes que produziu para a festa de primeiro aniversário da Revolução Soviética, que mostra um gigante camponês erguendo um palácio em seus braços. Única tela de grande dimensão da exposição, As Núpcias ou o Casamento Religioso (1918) é uma variação noturna de um tema recorrente de Chagall. Nela, um casal de noivos pintado em preto e branco se abraça, enquanto um anjo sépia une suas cabeças e um violinista surge ao longe numa árvore.

CENAS RUSSAS
A gravura O Cocho (1924): Chagall foi um dos grandes da técnica no século XX

As gravuras compõem a maior parte do acervo da mostra de Belo Horizonte (que, em outubro, deverá seguir para o Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, em versão reduzida). Chagall começou a se devotar a essa técnica depois da experiência traumática na revolução bolchevique, quando já morava em Paris e era cidadão francês (fato que explica por que a mostra integra os festejos do Ano da França no Brasil). Ele se tornaria um dos maiores gravadores do século XX. Estarão expostas no Brasil, entre outras, uma série sobre a Bíblia que ele levou nove anos para concluir e outra de cenas russas inspiradas na obra do escritor Nikolai Gogol (1809-1852).

"Embora dialogue com as grandes tendências modernistas, do surrealismo ao cubismo, Chagall nunca se filiou a nenhuma delas", diz o curador Fabio Magalhães. De fato, para entender Chagall, é mais adequado atentar para sua ligação com o que se pode definir como "Rússia profunda". Aquele mundo onírico de vacas coloridas e casais que flutuam no ar está em consonância com a noção hassídica do êxtase religioso. Mas os mergulhos metafísicos de Chagall não tinham fronteiras de credo: nos anos da II Guerra, ele pintou imagens de Cristo na cruz – uma metáfora do sofrimento dos judeus nos guetos. Afora essa fase, a obra de Chagall foi uma celebração da alegria. A paixão por Bella, a primeira de suas duas mulheres (oficiais: o pintor era um rematado mulherengo), rendeu algumas das pinturas mais sensuais do modernismo.

Blog Archive