Saturday, June 06, 2009

E tudo se dissipou no ar

E tudo se dissipou no ar

O voo 447 era para ser uma celebração da vida. 
Mas, por um breve espaço de tempo, foi melhor 
sonhar a vida do que vivê-la


Ronaldo Soares e Camila Pereira

Fotos Arquivo Pessoal e Ag. O Globo
JUNTOS ATÉ O FIM 
De cima para baixo, o cirurgião plástico gaúcho Roberto Chem, sua mulher, Vera, e a filha mais nova do casal,Letícia: os três viajavam para passar quinze dias na Grécia. O empresário Paulo Vale e a psicóloga Luciana Seba, ambos de Niterói, que voavam com os pais dele: ela queria visitar em Paris os locais onde o avô fora homenageado por criar uma vacina. A médica Bianca Machado Cotta e o procurador Carlos Eduardo Lopes de Mello, de Niterói: casamento no sábado antes do voo, com festa para 500 convidados


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Por quatro minutos, por 240 segundos, foi melhor sonhar a vida do que vivê-la. E quantos sonhos, e quantas vidas, e quantas vidas de sonho, e quantos sonhos de vida! O sonho do maestro carioca Silvio Barbato, de 50 anos, regente titular da orquestra sinfônica do Teatro Nacional de Brasília, era ampliar o acesso à música erudita no Brasil. Fez espetáculos juntando orquestras sinfônicas a bandas de música pop ou a grupos de meninos pobres que tocavam com instrumentos de lata. Apresentou-se ao lado tanto de grandes nomes do canto lírico, como Plácido Domingo e Montserrat Caballé, quanto de músicos populares, como Martinho da Vila. O casal de advogados Marcelo Parente, de 38 anos, e Marcelle Fonseca Lima, de 33, planejava um filho para o ano que vem. Marcelle vinha fazendo um tratamento de fertilização para engravidar. Na vida profissional, eles também tinham muitos projetos. Marcelle andava às voltas com a ampliação do escritório de advocacia do casal. Marcelo acabara de assumir a chefia de gabinete da prefeitura do Rio de Janeiro. O administrador de empresas Pedro Luiz Orleans e Bragança, de 26 anos, trineto da princesa Isabel, morava em Luxemburgo. Pretendia viajar muito, ganhar bagagem cultural e experiência no mercado financeiro. Solteiro, estava à procura de uma princesa nas rodas europeias.

O comissário de bordo brasileiro do voo 447, Lucas Domingues, de 24 anos, adorava voar, mas não queria permanecer na profissão pelo resto da vida. Pensava em retomar a faculdade de direito, que abandonara, e se especializar em direito internacional. Domingues tinha um entusiasmo notável por aprender idiomas. Falava com fluência francês, inglês, italiano e espanhol. Recentemente, começou a se aventurar também pelas línguas do Leste Europeu. Aprendeu russo, polonês, eslovaco e estava estudando romeno. O carioca Nelson Marinho, de 40 anos, mecânico especializado em plataformas de petróleo, estava radiante. Candidatara-se a um emprego na italiana Saipem, uma das maiores empresas de engenharia de petróleo do mundo, e conseguira a vaga. Ele e a mulher, Karla dos Santos, queriam comprar uma nova casa e ter um filho.

A MÚSICA SE CALOU 
O maestro carioca Silvio Barbato, 
da orquestra do Teatro Nacional de Brasília: esforço constante para popularizar a música clássica no Brasil. Ele dividiu o palco tanto com estrelas do canto lírico, como a soprano Montserrat Caballé, quanto com ídolos da música popular, como Martinho da Vila e Jamelão

A cantora brasiliense Juliana Ferreira Braga de Aquino, de 29 anos, passou os últimos meses ensaiando para dar o passo mais ambicioso de sua carreira – estrelar a versão alemã do musicalWicked, sucesso da Broadway, em Stuttgart. Ela começou a estudar música aos 4 anos e, ainda menina, aprendeu piano e canto clássico. Aos 15 anos, já cantava em musicais. Em 2003, um produtor europeu esteve no país e convidou-a para uma produção alemã do musical O Rei Leão. O bom desempenho lhe assegurou papéis em outros espetáculos. No ano passado, ela interpretou Maria Madalena em Jesus Cristo Superstar, na Áustria.

O dentista José Ronnel, de 35 anos, paraibano criado em Niterói, morava em Londres desde 2001 e juntava dinheiro para montar no Brasil um consultório com o mesmo padrão daquele em que trabalhava – como empregado – na Inglaterra. Queria se casar com a namorada, uma economista francesa, e comprar uma casa na praia niteroiense de Itacoatiara. Para tanto, segundo seus cálculos, faltavam entre cinco e dez anos de trabalho em Londres. O cirurgião plástico gaúcho Roberto Chem, especialista em transplante de pele, organizava um congresso médico a ser realizado em setembro, em Porto Alegre. Há um mês, ele vinha comemorando a classificação num concurso que lhe garantiu uma vaga de professor titular da Universidade Federal de Ciências da Saúde. Parte da celebração seria uma viagem de quinze dias pela Grécia. O engenheiro Marco Antônio Mendonça, de 44 anos, diretor da Vale, preparava-se para o maior passo de sua carreira. Em Dubai, nos Emirados Árabes, assumiria a presidência do Instituto Internacional do Manganês. Seria o primeiro brasileiro a ocupar esse posto. A funcionária pública Deise Possamai, 34 anos, era persistente em suas tentativas de ascender profissionalmente e, neste mês, começaria a cursar na Itália uma especialização em direito tributário. Achava que, com o curso, além da fluência no idioma italiano, poderia ganhar mais no emprego. O argentino Pablo Dreyfus e a brasileira Ana Carolina Rodrigues, casados há menos de dois anos, decidiram viajar numa segunda lua de mel. Conhecer Paris era um sonho da psicóloga Luciana Seba, de 31 anos, de Niterói. Ela incluiu em seu roteiro duas visitas incomuns em viagens turísticas: a Universidade Sorbonne e o Instituto Pasteur. A explicação para isso é que, na década de 1970, seu avô, Roched Seba, ex-diretor do Instituto Vital Brazil, fora homenageado nesses locais por ter criado a vacina dupla contra meningite. Luciana estudava francês e pretendia fazer doutorado na Europa.

O PALCO FICOU VAZIO
A cantora Juliana Ferreira Braga de Aquino, de Brasília: ensaios nos últimos meses para dar o passo mais ambicioso de sua carreira, estrelar a versão alemã do musical Wicked, sucesso da Broadway. Desde 2003 ela atuou em vários musicais na Europa. Em Jesus Cristo Superstar, fez o papel de Maria Madalena

O potiguar Soluwellington de Sá, de 40 anos, contava os dias para, no fim do ano, mudar de vida e passar mais tempo com a mulher e as duas filhas. Ele conseguiu juntar algum dinheiro como comandante de embarcações que buscam petróleo em águas rasas. Nessa função, viajou pelo mundo, mas se cansou de ficar longe de casa. Tudo o que queria era comprar uma casinha no interior do Rio Grande do Norte. O empresário alemão Mathias Peter, dono de uma loja em Stuttgart, era apaixonado pelo Rio de Janeiro, que elegeu como sua segunda cidade e onde comprou um apartamento. Peter passou a segunda quinzena de maio no Rio e comentou com os amigos que voltaria para as festas de fim de ano.

No sábado passado, Carlos Eduardo Lopes de Mello, procurador federal da Comissão de Valores Mobiliários, e Bianca Machado Cotta, médica, ambos de Niterói, casaram-se e deram uma festa para 500 pessoas. Iriam passar a lua de mel em Roma, com escala em Paris. O oceanógrafo Leonardo Veloso Dardengo, de Vitória, cursava doutorado na França, veio ao Brasil para um congresso e aproveitou a viagem para oficializar seu noivado com a namorada, Mariane Maciel. A carioca Adriana Moreira Henriques estava entusiasmada com sua primeira viagem à Europa. Em Portugal, iria encontrar tios e um primo.

No domingo, todos esses sonhos, de matizes tão diversos, de pessoas tão diferentes, se desmancharam no ar, afundaram no mar, caíram por terra.

 

Fotos Reprodução/Ag. O Dia, Marcos D'Paula/AE, Reprodução e Álbum de família

CEIFADOS NO AUGE
Da esquerda para a direita: Soluwellington de Sá, comandante de barcos; Lucas Domingues, o comissário de bordo brasileiro do voo 447; o cientista político argentinoPablo Dreyfus, casado com a brasileira Ana Carolina Rodrigues; o empresário alemãoMathias Peter, que tinha casa no Rio de Janeiro; a funcionária pública Deise Possamai;o oceanógrafo Leonardo Dardengo; a carioca Adriana Henriques



O PRÍNCIPE E O MECÂNICO
O economista Pedro Luiz Orleans e Bragança (à esq.), trineto da princesa Isabel, morava em Luxemburgo. Pretendia viajar muito pelo mundo e ganhar experiência no mercado financeiro. Também estava à procura de uma princesa nas rodas europeias. Nelson Marinho (à dir.), mecânico especializado em plataformas de petróleo, andava feliz. Ele havia conseguido um cargo numa das maiores empresas de engenharia de petróleo do mundo, sediada na Itália

 


Com reportagem de Alexandre Oltramari, Silvia Rogar, Marcelo Bortoloti e Renata Moraes

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