Saturday, April 18, 2009

Um gene, várias doenças

Um gene, várias doenças

Ao buscarem entender as doenças em sua dimensão
mais profunda, os pesquisadores encontraram algo
surpreendente e revolucionário: várias delas
possuem as mesmas bases genéticas


Naiara Magalhães

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Quadro: Relações inusitadas


Na última década, avançou a passos largos uma nova linha de pesquisa que vem descobrindo bases genéticas comuns a doenças que não têm absolutamente nada a ver uma com a outra – ou pelo menos assim se acreditava até então. Quem imaginaria, por exemplo, que a asma e a obesidade guardam alguma semelhança de origem? E a pneumonia de repetição e a infertilidade masculina? Mais: a artrite reumatoide e o progresso da infecção por HIV? Pois hoje já se sabe que cada um desses pares de doenças está ligado a pelo menos um mesmo gene. Os mecanismos que fazem esses genes participar ora da causa de uma doença, ora da de outra estão sendo pouco a pouco desvendados. O impacto dessa nova abordagem sobre a medicina é enorme – vai do melhor entendimento das causas de cada problema de saúde, passando pelo aperfeiçoamento das técnicas de diagnóstico e refinamento dos métodos de prevenção e tratamento, até, num futuro não muito distante, a reclassificação das doenças. "Graças às últimas descobertas genéticas, males que, até então, jamais entrariam no mesmo capítulo de um livro de medicina agora são estudados juntos, com benefícios para ambos", diz o médico Salmo Raskin, presidente da Sociedade Brasileira de Genética Médica.

Um dos trabalhos mais fascinantes sobre o assunto foi publicado na revista científica Proceedings of the National Academy of Sciences, em maio de 2007. Liderado pelos pesquisadores Marc Vidal e Albert-László Barabási, dos Estados Unidos, um grupo de estudiosos elaborou um mapa em que se estabelecem, por meio de 2 765 genes, as relações genômicas entre 1 284 doenças. À intrincada rede que se formou, eles deram o nome de diseasome, que em português seria traduzido livremente como "doençoma" – a reunião das doenças e dos genes associados a elas. O mapa mostra, por exemplo, que a cardiomiopatia e a distrofia muscular de Duchenne estão relacionadas a mutações num mesmo gene, o DMD. A princípio, a notícia é recebida com perplexidade. Uma análise mais detalhada das funções do DMD faz tudo, no entanto, ganhar sentido. O DMD está associado à manutenção das fibras musculares. A distrofia muscular de Duchenne é uma doença gravíssima e manifesta-se apenas em meninos. Os sintomas iniciais começam a aparecer aos 2 ou 3 anos – fraqueza e dificuldade para realizar movimentos simples, como pular e subir escadas – e pioram progressivamente. Em geral, na adolescência, o paciente é confinado a uma cadeira de rodas. Em estágios adiantados, devido ao enfraquecimento do diafragma, ele passa a ter dificuldade para respirar. Muito mais comum, a cardiomiopatia tem várias causas e sintomas e se caracteriza pelo enfraquecimento do músculo cardíaco. Há, como se vê, uma lógica na relação entre essas duas doenças – a mesma, aliás, que rege a maioria das associações entre os distúrbios com bases genéticas comuns. Uma mutação muito danosa desencadeia uma doença rara e grave (como a distrofia de Duchenne), enquanto uma alteração menos séria leva a uma doença comum e menos severa (como a cardiomiopatia).

Foi seguindo esse raciocínio que a oftalmologista brasileira Daniela Ferrara descobriu que a coroidite multifocal é, no fundo, a forma aguda e juvenil da degeneração macular relacionada à idade, a principal causa de cegueira em pessoas com mais de 65 anos nos países desenvolvidos. O trabalho coordenado por Daniela foi realizado na Universidade Columbia, nos Estados Unidos, e publicado na revista especializada Archives of Ophthalmology. Doença que afeta predominantemente mulheres entre 18 e 40 anos, a coroidite provoca a perda de 90% da visão na maioria de suas vítimas. A partir da descoberta de que suas origens coincidem com as da degeneração, a doença, que hoje é tratada com corticoides, um tipo de remédio pouco específico e com muitos efeitos colaterais, passa a ter boas chances de ser medicada de forma mais eficaz e segura. É simples: as pesquisas em busca de remédios para a degeneração macular são muito mais numerosas e poderão se desdobrar em terapias para a coroidite multifocal. Diz o médico Atul Butte, professor-assistente da Escola de Medicina da Universidade Stanford, nos Estados Unidos, um dos grandes nomes da diseasome: "A descoberta de que uma doença está geneticamente associada a outra mais conhecida poupa muitos anos de pesquisa, porque a busca de remédios não começa do zero, e sim de um ponto bem mais avançado".

As novas descobertas sobre a genética das doenças pode vir a mudar completamente o modo como as enfermidades hoje são classificadas (veja o quadro abaixo). Até o século XVIII, a "febre" era tida como doença e não como a manifestação externa de um problema de saúde. A lógica que regia a categorização das doenças era a dos sintomas – aquilo que se podia observar sem estetoscópio, microscópio ou raio X. Com o advento desses aparelhos e com os avanços dos conhecimentos sobre fisiopatologia, foi possível uma compreensão mais refinada das enfermidades. "O jeito como você vê as doenças depende muito do modo como você olha para elas", diz Butte. O que se tem feito, na última década, é justamente olhar para as doenças em sua dimensão mais profunda: os genes relacionados à sua origem.



Michael Nicholson/Corbis, Mauro Fermariello, Pasieka/SPL/Latinstock

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