Dirigismo cultural Mauro Chaves
Mas os que investem em cultura e arte às vezes não resistem à tentação de dirigir seus criadores, seja para submetê-los aos objetivos do marketing, seja para atrelá-los de alguma forma a objetivos de governo. E esses dois dirigismos, dependendo das doses com que sejam ministrados aos "pacientes" culturais, podem se tornar letais à criatividade de uma sociedade.
Foi posto em discussão, por 45 dias, o Programa de Fomento e Incentivo à Cultura (Profic). É a nova legislação com que o governo Lula pretende substituir a Lei Rouanet. Mas se a Lei Rouanet (Lei n.º 8.313, de 23/12/91), apesar dos inegáveis benefícios que já prestou à cultura e à arte no Brasil, nos últimos 18 anos tem propiciado muitas distorções - especialmente no campo do dirigismo mercadológico, afora a prática de irregularidades condenadas pela lei, mas mal fiscalizadas -, o novo projeto cultural do governo não consegue disfarçar sua intenção intervencionista, político-ideológica e até eleitoral, a começar pelo fato de ser assinado não pelo ministro da área - o da Cultura -, mas pela ministra chefe da Casa Civil. Realmente, não sabíamos dessa súbita afinidade da presidenciável "mãe do PAC" com a área artístico-cultural.
O texto do Profic tem uma omissão clamorosa e muito suspeita. Fez desaparecer o artigo 22 da Lei Rouanet, que dizia: "Os projetos enquadrados nos objetivos desta lei não poderão ser objeto de apreciação subjetiva quanto ao seu valor artístico ou cultural." E há coerência nessa omissão, pois os critérios de avaliação dos projetos culturais, pela nova lei, não são nada objetivos. Fazem uma hierarquização dos projetos, estabelecendo seis faixas de dedução do Imposto de Renda devido - as de 30% e 100% (como atualmente), mais as intermediárias, de 60%, 70%, 80% e 90% - por meio de julgamento descabido, porque facilmente influenciável por viés político ou patrulhológico.
O Profic mantém os três mecanismos já existentes de financiamento cultural, que são o Fundo Nacional de Cultura (FNC), os incentivos a projetos culturais via renúncia fiscal e o Fundo de Investimento Cultural e Artístico (Ficart). Cria, como maior novidade, o vale-cultura - algo como o vale-refeição e o vale-transporte -, um valor mensal a ser distribuído aos trabalhadores, com o qual possam frequentar cinemas, espetáculos teatrais, shows musicais, exposições, comprar livros, etc. A ideia pode ser interessante, desde que a distribuição de vales-cultura seja bem administrada e não se contamine de agrados eleitorais. Mas quanto ao FNC, chama a atenção sua pulverização em cinco fundos setoriais, e apenas um deles - o Fundo Setorial das Artes - se destina a apoiar, "dentre outras" programações específicas, o teatro, o circo, a dança, as artes visuais e a música (cf. artigo 8 do Projeto).
Assim, teatro, circo, dança, artes visuais e música - portanto, praticamente a totalidade dos espetáculos artísticos, já que o Fundo Setorial do Audiovisual (em que está o cinema) integra o FNC por lei à parte (Lei n.º 11.437, de 28/12/2006) -, para obterem, em conjunto, recursos do FNC, têm de competir com: o Fundo Setorial da Cidadania, Identidade e Diversidade Cultural; o Fundo Setorial da Memória e Patrimônio Cultural Brasileiro; o Fundo Setorial do Livro e Leitura; e o Fundo Global de Equalização. Quer dizer, é muito "setorial" para pouco fundo.
Será que os recursos do FNC canalizados para os projetos de "cidadania", "identidade", "diversidade cultural" ou "equalização" (como serão eles?) deixarão alguma sobrinha para financiar algum espetáculo de teatro, de circo, de dança, algum concerto, alguma ópera ou alguma exposição?
No artigo 17, parágrafo 3 do Projeto está que "o FNC alocará parte de seus recursos em seu Fundo Global de Equalização, a ser utilizado em investimentos setoriais e ações transversais..." Ainda que mal perguntemos: o que significa o financiamento de "ações transversais" na cultura? No artigo 18, parágrafo 1 está que "nos casos em que houver alta relevância cultural (...) o financiamento do projeto cultural poderá ser integral". O problema é que determinado projeto poderá ter "alta relevância cultural" para alguns (especialmente seus proponentes), mas não para outros (especialmente seus concorrentes). É aí que também entra a "apreciação subjetiva", que é vedada pela Lei Rouanet, mas permitida (porque não proibida) pela futura Lei Rousseff.
As entrevistas do ministro da Cultura sobre as distorções propiciadas pela Lei Rouanet dão grande ênfase ao volume bem maior de recursos, via renúncia fiscal, canalizados para produções culturais do chamado eixo Rio-São Paulo. Certamente o ministro não leva em conta que consome e produz mais projetos culturais uma Região do País que representa 73% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional e é o maior mercado para os produtores culturais de todo o País.
Que é preciso valorizar e incentivar a arte e a cultura de cada Região do Brasil não há a menor dúvida. Mas que não se tolha a criatividade da sociedade brasileira, como um todo, adotando-se outro abominável sistema de cotas - agora para a nossa produção artístico-cultural, por meio de uma descabida seletividade com base em discriminações regionais.