Saturday, September 27, 2008

O Vampiro antes de Drácula



LIVROS


de Martha Angel
e Humberto Moura Neto

O retrato oval

Edgar Allan Poe

O castelo, onde meu criado se atrevera a forçar entrada para não permitir que eu, em minha desesperada condição de ferido, passasse a noite a céu aberto, era uma daquelas edificações em que o desalento e a grandeza se amalgamavam e que, em meio aos Apeninos, contemplavam carrancudos a passagem do tempo, não menos na realidade do que na imaginação de Mrs. Radcliffe. Tudo fazia crer que seu abandono era temporário e bastante recente. Instalamo-nos num dos aposentos menores e de mobília menos suntuosa, situado numa torre isolada. Apesar de requintadas, as decorações eram gastas e antiquadas. As paredes estavam revestidas com tapeçarias e adornadas com inúmeros e multiformes brasões, e com um bom número de inspiradas pinturas modernas, em molduras de belos arabescos dourados. Por estas pinturas, que pendiam não só das paredes principais, mas nos vários recantos que a bizarra arquitetura do castelo tornava necessários, por estas pinturas senti grande interesse, talvez devido a um princípio de delírio. Assim, pedi a Pedro que fechasse as pesadas venezianas do quarto - uma vez que a noite já caíra -, que acendesse o candelabro alto junto a minha cabeceira, e escancarasse as cortinas de veludo negro e franjado do dossel que envolvia a cama. Com tais providências eu esperava que, se não conseguisse dormir, ao menos pudesse contentarme em olhar as pinturas, alternando a contemplação com o manuseio de um pequeno livro que encontrara sobre o travesseiro, e cujo propósito era comentá-las e descrevê-las.

Li por um longo, longo tempo, e com grande devoção contemplei os quadros. As horas voaram ligeiras, gloriosas, até que a negra meia-noite chegou. A posição do candelabro me desagradava. Estendendo a mão com dificuldade, e tentando não perturbar o criado que dormia, ajeitei-o de forma que a luz incidisse em cheio sobre o livro.

A ação teve, porém, um efeito inesperado. Os raios das inúmeras velas (pois havia muitas) agora recaíam sobre um nicho do quarto que até então estivera encoberto pela sombra de um dos balaústres da cama. Eu assim notei, sob a luz vívida, uma pintura que antes me passara despercebida. Era o retrato de uma mulher jovem. Passei os olhos rapidamente pela pintura e então cerrei-os. A princípio, a razão de assim proceder não ficou aparente nem mesmo à minha própria percepção. Mas, enquanto minhas pálpebras permaneceram fechadas, procurei na mente as razões para ter agido desta forma. Fora um movimento impulsivo, uma tentativa de ganhar tempo para a reflexão - para assegurar-me de que a visão não me enganara -, de acalmar e dominar minha imaginação e permitir-me um olhar mais sóbrio, mais preciso. Um instante depois, voltei a contemplar a pintura com atenção.

De que, agora, eu podia vê-la de maneira correta não havia mais dúvida, pois o primeiro lampejo das velas sobre o quadro pareceu dissipar o estupor sonolento que se havia apoderado de meus sentidos, e lançou-me sem aviso de volta à vigília.

O retrato, como já disse, era de uma mulher jovem. Ele mostrava apenas a cabeça e os ombros, representados na forma que recebe o nome técnico de vinheta, num estilo que lembrava as obras de Sully. Os braços, o colo e até as pontas de seus cabelos radiantes se fundiam de modo imperceptível com as sombras indistintas, mas profundas, que compunham o fundo do quadro. A moldura oval exibia uma ornamentação elaborada, filigranada no estilo mourisco. Como objeto de arte, nada seria mais admirável que a pintura em si. Mas não poderia ter sido a execução da obra, ou a beleza imortal do rosto, o que me tocara de modo tão inesperado e veemente. Menos ainda poderia ser que minha imaginação, despertada de seu torpor, houvesse confundido o retrato com uma pessoa viva. No ato, dei-me conta de que as particularidades da composição, da representação e da moldura haviam dissipado de imediato tal idéia, e teriam impossibilitado considerá-la mesmo que por um instante. Refletindo com atenção sobre esses pontos, permaneci por talvez uma hora, meio sentado, meio reclinado, o olhar fixo no retrato. Ao final, satisfeito com o real segredo de seu efeito, recostei-me na cama. Eu encontrara o feitiço da pintura numa absoluta verossimilhança de expressão, a qual de início surpreendeu-me para então desconcertar-me, dominar-me e, por fim, deixar-me estarrecido. Com um medo profundo e respeitoso, reconduzi o candelabro a sua posição anterior. Agora que a causa de minha profunda agitação estava fora de vista, apanhei ansioso o livro que comentava as pinturas e sua história. Buscando o número que designava o retrato oval, li estas palavras vagas e surpreendentes:

"Era uma donzela de rara beleza, tão encantadora como cheia de alegria. E amaldiçoada foi a hora em que viu, e amou, e desposou o pintor. Ele, passional, estudioso, austero, tendo já na Arte sua prometida. Ela, uma donzela de rara beleza, tão encantadora como cheia de alegria; toda luz e sorrisos, travessa como uma corça; amando e apreciando todas as coisas; abominando tão-somente sua rival, a Arte; temendo apenas a paleta e os pincéis e outros instrumentos malfadados que a privavam do semblante de seu amado. Assim, foi terrível para a donzela ouvir o pintor expressando o desejo de retratar até mesmo a jovem noiva. Era, porém, humilde e obediente, e por muitas semanas sentou-se, dócil, na câmera escura da torre, onde apenas a luz vinda do alto incidia sobre a tela pálida. Mas, ele, o pintor, regozijava-se com seu trabalho, que prosseguia hora após hora, dia após dia. E era um homem apaixonado, e intempestivo, e calado, que se perdeu em delírios, a ponto de não se permitir perceber que a luz tão lúgubre daquela torre antiga drenava a saúde e o espírito de sua noiva, que definhava aos olhos de to-dos, exceto aos seus. E, no entanto, ela sorria e continuava a sorrir, sem protestos, por saber que o pintor (que tinha grande renome) extraía dessa tarefa um prazer fervoroso e ardente, e trabalhava dia e noite para retratar aquela que tanto o amava, e que, porém, a cada dia mostrava-se mais frágil e abatida. Em verdade, houve quem vis-se o retrato e aos murmúrios comentasse a semelhança, como um prodígio, uma prova tanto do poder do pintor quanto de seu profundo amor por aquela que retratava de forma tão extraordinária. Entretanto, quando o trabalho estava quase concluído, ninguém mais era admitido na torre, pois o pintor fora arrebatado pelo ardor de seu trabalho, e apenas raramente erguia os olhos da tela, mesmo que para fitar a face da esposa. E ele se recusava a ver que os matizes que aplicava na tela eram extraídos da mulher que tinha a seu lado. Quando várias semanas haviam passado, e pouco restava a fazer, salvo uma pincelada sobre a boca e um toque sobre o olho, o espírito da dama outra vez tremeluziu como a chama da lamparina. E a pincelada foi aplicada e o toque colocado; e, por um momento, o pintor permaneceu em transe diante da obra que criara. Mas, no instante seguinte, enquanto ainda a admirava, ficou trêmulo e empalideceu. Assombrado, e exclamando em alta voz, "Isto é de fato a própria Vida!", virou-se para olhar sua amada. Ela estava morta."


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