Saturday, January 06, 2007

Comédia da vida provinciana



Trecho do livro 47 Contos,
de Juan Carlos Onetti

Avenida de Mayo-Diagonal
Norte-Avenida de Mayo

Atravessou a avenida, numa pausa do tráfego, e saiu andando pela Florida. Um arrepio de frio estremeceu-lhe os ombros e, de imediato, a resolução de ser mais forte que o ar viajante o fez retirar as mãos do abrigo dos bolsos, inflar a curva do peito e erguer a cabeça, em divina busca no céu monótono. Poderia enfrentar qualquer temperatura; poderia viver mais lá embaixo, para além de Ushuaia.

Os lábios estavam se afinando com o mesmo propósito que amiudava os olhos e quadriculava a mandíbula.

Obteve, primeiro, uma exagerada visão polar, sem cabanas nem pingüins; abaixo, branco e duas manchas amarelas, e acima o céu, um céu de quinze minutos antes da chuva.

Depois: Alasca - Jack London -, as peles grossas escamoteavam a anatomia dos homens barbudos; as botas altas os transformavam em bonecos impossíveis de tombar, apesar da fumaça azul dos longos revólveres do capitão da Polícia Montada, e ao se agachar, acachapando-se instintivamente, o vapor de sua respiração falsificava uma auréola para o chapéu hirsuto e as barbas castanhas, sujas. Tangas's expunha sua dentadura às margens do Yukon; seu olhar se estendia como um braço forte para segurar os troncos que viajavam rio abaixo. A espuma repetia: Tangas's é de Sitka: Sitka, bela como um nome de cortesã.

Na Rivadavia um automóvel quis detê-lo; mas uma enérgica manobra deixou-o para trás, junto com um ciclista cúmplice. Como troféus da vitória fácil, levou duas luzes do carro ao desolado horizonte do Alasca. De modo que na metade da quadra não teve muito trabalho para eludir o cálido ambiente que sustentavam no cartaz os ombros potentes de Clark Gable e os quadris de la Crawford; sentiu-se, apenas, impelido a alçar até o intercílio as rosas que a estrela dos olhos grandes exibia no meio do peito. Três noites ou três meses atrás sonhara com a mulher que tinha rosas brancas em lugar de olhos. Mas a lembrança do sonho foi somente um relâmpago para sua razão; a lembrança deslizou rápido, com um esboço de vôo, como a folha que a rotativa acaba de parir, e acomodou-se, quieta, sob as outras imagens que continuaram caindo.

Instalou as luzes roubadas do carro no céu que se copiava no Yukon, e a marca inglesa do carro fez ressoar o ar seco da noite nórdica com enérgicos What que não estavam encerrados na câmara em surdina, mas que espoucaram como tiros no azul frio que separava os pinheiros gigantes, para depois subirem como rojões até o branco estelar das Rochosas.

Quando Brughtton se agachou, cobrindo a fogueira enorme com o corpo, e ele, Víctor Suaid, ergueu-se com o Coroner pronto para disparar, uma mulher fulgurou os olhos e um crucifixo entre a pele do mantô, tão perto dele que seus cotovelos se tocaram.

No mistério das costas, o colete de Suaid marcou dois profundos equadores no impulso da inspiração com que tentou incrustar no cérebro o perfume da mulher e a própria mulher, misturada ao frio seco da rua.

Entre as duas levas de pessoas que transitavam, a mulher logo virou um rastro que subia e descia, da sombra para a luz das lojas e de novo para a sombra. Restou, porém, o perfume em Suaid, arejando suave e definitivamente a paisagem dos homens; e das margens do Yukon nada restou além da neve, uma tira de neve da largura da calçada.

- A América do Norte comprou o Alasca da Rússia por sete milhões de dólares.

Anos atrás, essa informação teria suavizado a caneta do major Astin na aula de geografia. Mas agora não passou de pretexto para um novo devaneio.

Fez crescer, dos lados da tira de neve, duas alas de soldados a cavalo. Ele, Alexandre Ivã, Grão-duque, marchava entre os soldados, junto de Nicolau II, limpando a cada passo a neve das botas na borda de um capote de peles.

O Imperador caminhava balançando-se, como aquele inglês, segundo chefe de tráfego da Central. As pequenas botas brilhavam ao passo marcial, que era agora a única expressão possível de sua mobilidade.

- Stálin acabou com a seca no Volga.

- Alegria para os barqueiros, Majestade!

O canino de ouro do Czar confortou-o. Nada tinha a menor importância - energia, energia -, os peitorais contraídos sob o feixe dos cordões e da grande cruz, das velhas barbas de Verchenko, o conspirador.

Parou na Diagonal, onde o Boston Building dormia sob o céu cinzento, defronte do estacionamento.

María Eugenia, naturalmente, pôs-se em primeiro plano com o vôo de suas saias brancas.

Só a vira de branco uma vez; anos atrás. Tão bem fantasiada de colegial, que os dois pontaços simultâneos que os seios davam no tecido, ao se chocarem com a pureza do grande laço de fita preto, faziam da menina uma mulher madura, cética e cansada.

Teve medo. A angústia começou a escalar seu peito, com breves golpes, até os arredores da garganta. Acendeu um cigarro e apoiou-se na parede.

Estava com as pernas acorrentadas pela indiferença e sua atenção ia-se dobrando, como o velame do barco que ancorou.

Com o silêncio do cinema de sua infância, as letras de luz navegavam nos trilhos do anúncio: ONTEM NA BASILÉIA - CALCULA-SE EM MAIS DE DUAS MIL AS VÍTIMAS.

Virou a cabeça com raiva.

- Que se danem todos!

Sabia que María Eugenia estava vindo. Sabia que teria de fazer alguma coisa, e seu coração perdia totalmente o compasso. Ter de debruçar-se sobre aquele pensamento o aborrecia; e também saber que, por mais que atordoasse seu cérebro em todos os labirintos, muito antes de ir embora para descansar encontraria María Eugenia numa encruzilhada.

Esboçou, porém, automaticamente um gesto de fuga:

- Por um cigarro... eu iria até o fim do mundo...

Vinte mil cartazes proclamaram seu plágio na cidade. O homem de penteado e dentes perfeitos estendia às pessoas sua mão vermelha, com o maço mostrando - 1/4 e 3/4 - dois cigarros, como canhões de um destróier mirando o tédio dos transeuntes.

- ... até o fim do mundo.

María Eugenia vinha com seu vestido branco. Antes que se tornassem fisionomia os planos do rosto, entre as vertentes de cabelos pretos, quis deter o ataque. O nível do medo roncou junto das amígdalas:

- Fêmea!

Desesperado, subiu até as letras de luz que iam saindo, uma a uma, com suavidade de bolhas, da parede preta:

O CORREDOR MC CORMICK BATEU O RECORDE MUNDIAL DE VELOCIDADE EM AUTOMÓVEL

A esperança deu-lhe forças para desalojar de um só golpe a fumaça, unindo o o da boca com a paisagem.

DADE EM AUTOMÓVEL - HOJE EM MIAMI

O jato de fumaça escondeu em oportuna camuflagem a cútis áspera da parede e do piso quadriculado, o corpo ficou ali. O cigarro entre os dedos anunciava o suicídio com um fio lento de fumaça.

HOJE EM MIAMI ALCANÇANDO UMA VELOCIDADE MÉDIA

Sobre a areia de ouro, entre gritos enérgicos, Jack Ligget, o manager, polia e repolia as peças brilhantes do motor. O carro, com nome de ave de cetraria, parecia um gafanhoto gigante e preto, sustentando, incansável, com duas patinhas adicionais, a lâmina de barbear da proa.

Os retorcidos tubos de órgão, a bombordo e a estibordo, deram vinte e vinte detonações simultâneas, uma a uma, que se foram em nuvenzinhas lentas. Com a linha das rodas na altura das orelhas, começou a corrida. Cada estampido adquiria ressonâncias de júbilo em seu crânio e a velocidade era o espaço entre os dois rastros, transformado numa viborazinha que dançava no ventre.

Olhou para o rosto de Mc Cormick, pele escura ajustada sobre ossos finos. Sob o elmo de couro, atrás dos óculos grotescos, os olhos estavam duros de coragem e, no sorriso sedento de quilômetros que estirava levemente sua boca, filtrou-se a ordem breve, condensada num verbo no infinitivo.

Suaid inclinou-se sobre o farol e empurrou o carro no tranco. Arremeteu até que o vento se tornou rugido, e na navegação as rodas tocavam suavemente o solo, que as despedia rápido, como a roleta faz com a bola de marfim. Arremeteu até que sentiu doer no ventre a viborazinha, fina e rígida feito uma agulha.

Mas a imagem era forçada, e a inutilidade desse esforço evidenciou-se, certeira, sem subterfúgios possíveis.

A fuga se apagou como se estivesse sob um aguaceiro, e Suaid ficou com a cara meio afundada no chão, os braços gesticulando em movimentos precisos de semáforo.

- Esconder-me...

Mas colocou-se debaixo de si mesmo, como se o solo fosse um espelho e seu último eu a imagem refletida.

Fitava os olhos velados e a terra úmida na concavidade do esquerdo. O nariz quase chato na ponta, como o das crianças que olham por detrás das vidraças, e os maxilares tascando a dura e lisa lâmina da angústia. O ralos cabelos loiros riscavam a testa e a mancha da barba no pescoço ia-se arroxeando.

Fechou os olhos com força e tentou afundar; mas as unhas deslizaram no espelho. Vencido, largou o corpo, entregue, sozinho, na esquina da Diagonal.

Era o centro de um círculo de serenidade que se ampliava apagando os prédios e as pessoas.

Então se viu, pequeno e solitário, no meio daquele sossego infinito que seguia se estendendo. Lembrou-se, com carinho, de Franck, o último soldado de brinquedo que ele quebrara; na lembrança, o boneco tinha uma perna só e o enegrecido U dos bigodes destacava-se sob o olhar distante.

Olhava-se de montes de metros de altura, observando com simpatia o corte familiar dos ombros, o vão da nuca e a orelha esquerda amassada pelo chapéu.

Desabotoou lentamente o paletó, esticou as pontas do colete e outra vez deslizou os botões pelos talhos das casas. No fim da vagarosa operação, ficou triste e sereno, com María Eugenia dentro do peito.

Mas as crostas de indiferença que tinham protegido sua inquietude estavam caindo, e o mundo exterior começava a alcançá-lo.

Sem necessidade de pensar nisso, iniciou o retorno pela Florida. A rua, deserta de devaneios, perdera a dentadura de Tangas's e a barba loira de Sua Majestade Imperial.

A claridade das vitrines e as grandes luzes suspensas nas esquinas davam uma atmosfera de intimidade à calçada estreita. Imaginou um salão do século passado, tão refinado que os homens não precisavam tirar o chapéu.

Apertou o passo e quis apagar um sentimento indefinido, com um quê de fraqueza e ternura, que começava a insinuar-se.

Com uma metralhadora em cada beco dava para varrer toda essa ralé.

Era a hora do anoitecer no mundo inteiro.

Na Puerta del Sol, em Regent Street, no Boulevard Montmartre, na Broadway, em Unter den Linden, em todos os lugares mais concorridos de todas as cidades, as multidões se aglomeravam, iguais às de ontem e às de amanhã. Amanhã! Suaid sorriu, com um ar de mistério.

As metralhadoras dissimulavam-se nas varandas, nas bancas de jornais, nas cestas de flores, nos terraços. Eram de todos os tamanhos e estavam todas limpas, com uma risca de luz fria e alegre nos canos polidos.

Owen fumava, jogado na poltrona. Sob o ângulo formado por suas pernas, a janela deixava passar o pisca-pisca dos primeiros anúncios luminosos, os ruídos amortecidos da cidade que se aquietava e a lividez do céu.

Suaid, junto ao transmissor telegráfico, espreitava a passagem dos segundos com um sorriso maligno. Mais que as detonações das metralhadoras, esperava que o momento decisivo agitasse os músculos faciais de Owen, tornando transparentes as emoções por trás da córnea dos olhos claros.

O inglês continuou fumando, até que um estalido do relógio anunciou que o pequeno martelo se levantava para dar o primeiro golpe daquela série de sete, que se multiplicariam, de forma inesperada e milionária, sob os sinos de todos os céus do Ocidente.

Owen levantou-se e jogou o cigarro.

- Ya.

Suaid caminhava, com um frêmito de nervosa alegria. Ninguém sabia, na Florida, como era estranhamente literária sua emoção. As mulheres altas e o porteiro do Grand também ignoravam as ramificações que adquiria em seu cérebro o "Ya" de Owen. Porque "Ya" podia ser espanhol ou alemão; e daí surgiam caminhos impensados, caminhos onde a incompreensível figura de Owen se dividia em mil formas diferentes, muitas delas antagônicas.

Diante do trânsito da avenida, quis que as metralhadoras cantassem velozmente, entre bolas de fumaça, seu rosário de contas alongadas.

Mas não conseguiu e virou-se para contemplar a Florida.

Estava cansado e calmo, como se tivesse chorado durante muito tempo. Mansamente, com um sorriso agradecido para María Eugenia, saiu andando em direção aos vidros e às luzes policrômicas que cobriam a rua com seu pulsar rítmico.

(La Prensa, Buenos Aires, 1933)

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