Monday, September 18, 2006

A era do horrorismo Martin Amis(continuação)

ESTADO

TRADUÇÃO DE CELSO M. PACIORNIK


O assassínio em massa por atentado suicida é mais que terrorismo: é horrorismo. É o auge da perversidade. O assassino em massa e suicida pede que suas vítimas em potencial contemplem seu semelhante com uma ordem completamente nova de execração. Não é como olhar para o cano de um revólver. Podemos dizer que isso é assim porque vemos o que acontece, às vezes, quando o assassino em massa e suicida nem está lá - como na injustiça espantosamente sumária cometida contra o brasileiro Jean Charles de Menezes em Londres. Um exemplo ainda mais chocante foi a correria provocada por um rumor na ponte em Bagdá (31 de agosto de 2005). Este é o superterror inspirado pelo assassínio em massa por atentado suicida: basta sussurrar as palavras, e você provoca uma atropelamento fatal de milhares de pessoas. E resta uma medida precisa da contorção islâmica: eles sustentam que um ato de auto-salpicação letal, no interesse de uma “causa” inatingível, traz consigo as chaves do paraíso. Sam Harris, em The End of Faith: Religion, Terror, and the Future of Reason, ressalta o quão completa e prontamente o assassino em massa e suicida é “salvo” Qual você preferiria, dada a crença?

“... o martírio é a única maneira pela qual um muçulmano pode contornar o doloroso litígio que nos espera no Dia do Juízo e seguir diretamente para o Céu. Em vez de gastar séculos apodrecendo na terra à espera de ser ressuscitado e em seguida interrogado por anjos coléricos, o mártir é imediatamente transportado para o Jardim de Alá...”

A conversa de mesa de Osama bin Laden nas Fazendas Tarnak, no Afeganistão, onde ele treinou os agentes antes de setembro de 2001, deve ter incluído muitos capítulos seguidos sobre vício, corrupção, perversão, prostituição, etc, do Ocidente. E, em 1998, quando estações se sucederam em torno da fraqueza do presidente por uma felação, ele pareceu ter boas bases para seu erro de cálculo mais grave: a crença de que os Estados Unidos eram um antagonista mais fácil que a URSS (para cuja derrota, incidentalmente, os “afegãos árabes” desempenharam um papel desprezível). Contudo, um simpatizante como o obtuso “taleban americano” John Walker Lindh, se tivesse estado lá, e fosse um pouco mais brilhante, poderia ter formulado o seguinte argumento.

Agora seria um bom momento para atacar, teria dito John a Osama, porque o Ocidente está enfraquecido, não só por sexo e álcool, mas por 30 anos de relativismo multicultural. Eles acharão que o atentado suicida é apenas uma fraqueza exótica, como mortes por honra-e-vergonha ou circuncisão feminina. Ademais, é religioso, e eles são sempre lentos em tudo que se refere a religião. Dias depois de nosso ataque inaugural, os imperiais britânicos tomarão o caminho do Islã, e ali permanecerão. E você ficará espantado com o tempo que a palavra islamofobia, como um acusação irretorquível, cobrirá o islamismo também. Eles precisarão de anos para descobrir a palavra que desejam - e islamofobia claramente não servirá. Mesmo que a a Operação Aviões tenha êxito, e milhares morram, a Esquerda bocejará e ficará imaginando por que esperamos tanto. Ataque já. Sua ideologia os fará relutantes para ver o que têm diante de si. E fará deles alunos lentos.

No verão de 2005, o assassínio em massa por atentado suicida havia evoluído. No Iraque, jihadistas estrangeiros, peregrinos da guerra, estavam se infiltrando pelas fronteiras para serem envolvidos em explosivos, pregos, porcas e parafusos - muitas vezes por Baathistas não religiosos com objetivos puramente seculares - para serem preparados como peças de artilharia e em seguida enviados no mesmo dia para massacrar seus “irmãos” muçulmanos. O assassínio em massa por atentado suicida, em outras palavras, passou por uma fase de decadência e estava então virando objeto de deboche. Num único mês (maio), houve mais atentados suicidas no Iraque que durante toda a intifada. E foi esta, em 25 de julho, a resposta ponderada do prefeito de Londres aos acontecimentos de 7 de julho:

“Como eles não têm aviões a jato, não têm tanques, só dispõem seus corpos para usar como armas. Num equilíbrio injusto, é isso que as pessoas usam.”

Lembro-me de um infeliz poemeto, lá por 2002, que defendia exatamente a mesma idéia. Não, eles não têm F-16s. Pergunta: será que o prefeito gostaria que tivessem F-16s? E, não, seus corpos não são o que as “pessoas” usam. São o que os islâmicos usam. E deveríamos pesar também a torpeza espiritual desses martírios. “Mártir” significa testemunha. O assassino em massa e suicida não testemunha nada - e não sacrifica nada. Ele morre por um ganho vulgar e enganoso. E em outro nível, também, a lógica para “operações de martírio” é um sofisma teológico do mais negro cinismo. Seu objetivo é simplesmente a obtenção de sistemas de entrega.

Nossa ideologia, que às vezes chamam de ocidentalismo, nos enfraquece de duas maneiras. Enfraquece nossa capacidade de percepção, e enfraquece nossa vontade e unidade moral. Como diz Harris:

“Sayyd Qutb, o filósofo predileto de Osama bin Laden, sentiu que o pragmatismo significava a morte da civilização americana... O pragmatismo, quando civilizações entram em choque, não parece propenso a ser muito pragmático. Perder a convicção de que se pode estar realmente certo - sobre qualquer coisa - parece uma receita para o caos do Fim dos Tempos vislumbrado por (William B.) Yeats : quando ´falta ao melhor toda convicção, enquanto o pior está cheio de intensidade apaixonada`.”

O argumento inicial que alcançamos por enquanto, na explicação de qualquer conflito, é o argumento da equivalência moral. Não se pode permitir que nenhum valor fique gravado em pedra; por isso começamos a questionar nossa capacidade de identificar até o que é o malum per se. Espancamentos em prisão, também, são o mal em si, e o mesmo vale para a delegação de tortura e assassinato a regimes menos magnânimos e, (é preciso que se diga) menos hipócritas. No tipo de guerra em que estamos envolvidos, um episódio como Abu Ghraib é mais que um desvio vergonhoso - é o equivalente a uma batalha perdida. Nossa vantagem moral, ainda vasta e evidente, não é um peso, e deveríamos fortalecê-la e expandi-la. Como nossa dependência da razão, ela é uma força estratégica, e sustenta nossa legitimidade.

Existe uma outra superposição simbiótica entre a práxis islâmica e a nossa, e isto é estranho e lamentável. Refiro-me ao drástico crescimento da não-entidade. Em nossa cultura de torneio de popularidade, com suas nulidades VIPs e mediocridades meteóricas, entendemos os atrativos da fama não justificada - aliás, da imortalidade instantânea e não merecida. Sentir que se é um ator geo-histórico é uma isca fabulosa para os condenados, como eles a vêem, à exclusão e à anomia. Em seu modo mais discreto, foi este, talvez, o componente chave da atração de intelectuais ocidentais pelo comunismo soviético: “junte-se a ele” e você será de um momento para outro um contribuinte de acontecimentos planetários. Enquanto Muhammad Atta virava o 767 para seu destino, ele estava confiante, pelo menos, que seus conterrâneos planejadores urbanos em Alepo se recordariam do seu nome, junto com todos os demais na Terra. Da mesma maneira, o fantasma de Shehzad Tanweer, enquanto observava as equipes desvairadas recolhendo restos humanos no cadinho infestado de ratos sob as ruas de Londres, podia ter certeza de que havia mandado para espaço o pesque-e-pague em Leeds. E aquela outra grande nulidade, Osama bin Laden - ela é eterna.

Em julho de 2005, voei de Montevidéu a Nova York - e do inverno para o verão - com minha filha de seis anos e sua irmã de oito. Tomava uma cerveja na fila do check-in, uma prática tolerada em Carrasco ( e que certamente provocaria olhares de censura em, por exemplo, o consagrado terminal Hajj no Mehrabad de Teerã); depois seguimos para a Segurança. Ora, sei que algumas meninas de seis anos podem parecer bastante suspeitas; mas minha filha mais nova não é assim. É uma lourinha magra com grandes olhos castanhos e voz trêmula. Mesmo assim, fiquei meia hora no balcão enquanto o funcionário revistava solene e metodicamente a sua mochila - observando astutamente cada fita de história e cada lápis, apalpando toda a extensão dos quatro membros de seu pato de pelúcia.

Deve haver uma palavra melhor do que tédio para o transe de inanição que me acometeu. Eu queria dizer algo como, “Nem mesmo os islâmicos começaram a explodir suas próprias famílias em aviões. Portanto, por favor, desistam até que eles comecem. Ah, sim: e limitem-se a pessoas que pareçam oriundas do Oriente Médio.” As revelações de 10 de agosto de 2006 só chegariam 13 meses depois. E apesar da exposição e prevenção de seu banho de sangue de inocentes especialmente ambicioso (a maioria, mulheres e crianças), os (alegados) jihadistas Walthamstow não se esforçaram em vão. Eles falharam na promoção do terror, mas tiveram uma grande vitória simbólica para o tédio: a proibição de livros no vôo de sete horas da Inglaterra para os Estados Unidos.

Minhas filhas e eu chegamos em segurança em Nova York. Em Nova York, em algumas estações do metrô, a polícia estava revistando todos os passageiros, para conter o terrorismo - obrigando assim cada terrorista a caminhar alguns quarteirões até uma estação do metrô onde a polícia não estivesse revistando passageiros. E não consegui evitar uma visão do futuro; nesse futuro, tomar um ônibus urbano será como voar pela El Al. Na segurança culpada de Long Island, assisti a cobertura da TV de minha casa, onde meus outros três filhos vivem, onde em breve estarei vivendo de novo com os cinco. Lá estavam os londrinos, em 8 de julho, indo para o trabalho a pé, com olhares duros e vigilantes, e não encontrando nenhum prazer em nada do que via. Eric Hobsbawn acertou em meados dos anos 90 quando disse que o terrorismo era parte da “poluição” atmosférica das cidades ocidentais. É um programa eficiente. Bombardeie Nova York e poluirá Madri; bombardeie Madri e poluirá Londres; bombardeie Londres e poluirá Paris e Roma, e poluirá de novo Nova York. Mas ali estava o consolo que nos concedia o prefeito. Não, não deveríamos nos surpreender com o uso desse eterno artifício de guerra. Usar seus corpos é o que as pessoas fazem.

A era do terror, assim suspeito, também será lembrada como a era do tédio. Não o tipo de tédio que aflige o blasé e o decadente, mas um supertédio, rondando e complementando o superterror do assassínio em massa por atentado suicida. E embora acabaremos prevalecendo na guerra contra o terror, ou reduzindo-a, como diz Mailer, a “um nível tolerável” (esta expressão vai pegar, e será usada por políticos, com discreto orgulho), não temos a menor chance na guerra contra o tédio. Porque o tédio é algo que o inimigo não sente. Sendo claro: o oposto da crença religiosa não é ateísmo, ou secularismo, ou humanismo. Não é um “ismo”. É independência mental - isto é tudo. Quando me refiro à era do tédio, não estou pensando em filas de aeroporto ou revistas policiais no metrô. Quero dizer o confronto global com a mente dependente.

Uma maneira de pôr fim à guerra contra o terror seria capitular e se converter. O período de transição não seria ameno, sem dúvida, com muito trabalho duro a ser feito nas praças urbanas, centros de cidade, e campos gramados. No entanto, enquanto o califado é restaurado em Bagdá, para grande alegria, os neófitos sobreviventes logo se acostumariam com o volumoso código penal aplicado pelo Ministério da Promoção da Virtude e da Supressão do Vício. Seria um mundo de perfeito terror e perfeito tédio, e nada mais - um mundo sem jogos, sem artes, e sem mulheres, um mundo onde o único entretenimento é a execução pública. Minha filha do meio, hoje com nove anos, ainda acredita em criaturas imaginárias (Papai Noel, a Fada do Dente); assim ela teria ao menos isso em comum com seu novo marido.

Assim como o judaísmo fundamentalista e o cristianismo medieval, o Islã é totalitário. Isso quer dizer que ele reivindica um domínio absoluto sobre o individual. De fato, não existe o indivíduo; existe apenas o Umma - a comunidade de crentes. O aiatolá Khomeini, em seus copiosos escritos, retorna freqüentemente a esse tema. Ele observa, sem nenhuma indulgência, que os crentes na maioria das religiões parecem pensar que, enquanto observarem todas as devoções formais, no resto de seu tempo eles podem fazer o que bem quiserem. O “Islã”, como ele com freqüência nos lembra, “não é assim”. O Islã o acompanha para toda parte, à cozinha, ao quarto de dormir, ao banheiro, e, além da morte, à eternidade. Islã significa “submissão” - a rendição da independência mental. Essa rendição carrega agora o peso de mais de 60 gerações, e 14 séculos.

A altiva auto-suficiência ou, se preferirem, a extrema falta de curiosidade da cultura islâmica tem sido muito notada. A Espanha atual traduz tantos livros para o espanhol, anualmente, quanto o mundo árabe traduziu para o árabe nos últimos 1.100 anos. E as potências islâmicas da Baixa Idade Média mal perceberam a existência do Ocidente até que começaram a perder batalhas para ele. A tradição de autarquia intelectual foi tão vigorosa que o Islã permaneceu indiferente mesmo a inovações facilmente acessíveis e obviamente úteis, incluindo, espantosamente, a roda. A roda, tal como a conhecemos, facilita rolar as coisas. Bernard Lewis, em What Went Wrong?, observa sabiamente que ela também torna as coisas mais fáceis de serem roubadas.

No início do século 20, todo o mundo muçulmano , com exceções parciais, fora subjugado pelos impérios europeus. E naquele ponto, as portas da percepção foram abertas à influência estrangeira: da Alemanha. Essa lealdade custa ao Islã seu último império, o Otomano, por décadas um “casco de navio imprestável” que foi devidamente desmantelado e repartido depois da Primeira Guerra Mundial - uma guerra armada em Berlim. Resoluto, o Islã continuou a procurar patrocínio e inspiração na Alemanha. Quando a experiência nazista terminou, em 1945, a simpatia por seus ideais persistiram por anos, mas o Islã foi obrigado a olhar para outros lados. Ele não teve escolha; geopoliticamente, não havia outro lado para se voltar. E o facho foi passado da Alemanha para a URSS.

Assim, o Islã, no fim, se mostrou sensível à influência européia: a influência de Hitler e Stalin. E não é difícil estabelecer similaridades entre o islamismo e os cultos totalitários do século passado. Anti-semitas, antiliberais, antiindividualistas, antidemocráticos, e, mais decisivamente, anti-racionais, eles também eram cultos da morte, impelidos pela morte e alimentados pela morte. A principal distinção é que o paraíso que os nazistas (pagãos) e os bolcheviques (ateus) procuravam criar era desumano, erguido sobre a matéria em decomposição de milhões de cadáveres. Para eles, a morte era criativa, com certeza, mas morte ainda era morte. Para os islâmicos, a morte é uma consumação e um sacramento; a morte é um começo. Sam Harris está certo:

“O islamismo não é apenas o último odor de niilismo totalitarista. Há uma diferença entre niilismo e um desejo de recompensa sobrenatural. Os islâmicos poderiam esfacelar o mundo em átomos e ainda não serem culpados de niilismo, porque tudo em seu mundo foi transfigurado pela luz do paraíso...” Movimentos de massa patológicos são sustentados por “sonhos de onipotência e sadismo”, na expressão de Robert Jay Lifton. Isso geralmente basta. O islamismo acrescenta um terceiro elemento de persuasão a seus guerreiros: uma imortalidade celeste que começa antes mesmo do momento da morte.

Ao encerrar um milênio, o Islã podia se dar ao luxo de ser autárquico. Sua ascensão é uma das maravilhas da história mundial - uma reação em cadeia de conquista e conversão, uma apropriação não só de território mas de milhões de corações e mentes. O vigor de seu ideal de justiça permitiu níveis de tolerância significativamente maiores que os do Ocidente. Também culturalmente o Islã foi o mais evoluído. Suas assimilações e seu aprendizado potencializaram a Renascença - da qual, lamentavelmente, ele não compartilhou. Durante toda sua ascendência, o Islã foi sustentado pelo que Malise Ruthven, em A Fury of God, chama de “o argumento do sucesso manifesto”. O fato da expansão subscreveu o mandato do Céu. E agora, nos últimos 300 ou 400 anos, a realidade observável propôs uma réplica: o argumento do fracasso manifesto. Tal como é entendido, no cosmos islâmico não há nada mais doloroso que a suspeita de que alguma coisa desnaturou a aliança com Deus. Essa conclusão insuportável deve naturalmente ser negada, mas está subliminarmente presente, e representa, talvez, o sofrimento apocalíptico do islâmico.

Nos últimos cinco anos, o que estivemos testemunhando, explosão ou colapso moral aparte, é uma agonia de morte: a agonia de morte do Islã imperial. O islamismo é a última onda - a última convulsão. Até 2003, podia-se tirar algum conforto da virulência da deformação islâmica. Nada tão insanamente dionisíaco, tão impossivelmente venenoso, poderia se manter íntegro com o passar do tempo. No século 20, excluindo-se a África, as únicas erupções comparáveis de fome de morte, de cio da morte, se resumiram à Alemanha nazista e o Camboja stalinista, a primeira durando 12 anos, a outra, três e meio. Hitler, Pol Pot, Osama: esses homens só pedem para ser os últimos a morrer. Mas há algumas razões sólidas para se pensar que o confronto com o islamismo poderá ser penosamente prolongado.

A esta altura não é muito difícil delinear o que saiu errado, psicologicamente, na guerra do Iraque. A virada fatal, a perda fatal de legitimidade, veio não só com o erro, mas também com a ênfase cínica nas armas de destruição em massa de Saddam: as agências de inteligência de cada país na Terra, Iraque inclusive, acreditavam que ele as possuía. A virada fatal foi a submissão muito palpável do presidente americano à embriaguez do poder. Seu andar, sua voz, seu idioma, até seu aparecimento mortificante em traje de vôo no porta-aviões USS Abraham Lincoln (“Missão Terminada”) - cada ponto e vírgula de sua linguagem corporal traindo a confiança inescrupulosa do aumento de poder.

Deveríamos pateticamente acrescentar que Tony Blair sucumbiu a isso também - com uma diferença. Na “velha” Europa, como Rumsfeld a chamou com insolência, a idéia de uma classe política estava predicada na imposição de controles e equilíbrios, de estabilizadores psíquicos para limitar a corrupção que a supremacia sempre acarreta. Não era apenas uma questão de higiene mental; todos entendiam que uma mente apodrecida tomará decisões podres. Blair sabia disso. E sabia que seu trunfo não era alto: a necessidade de o povo americano ouvir uma aprovação da guerra com sotaque britânico. Contudo, ali estava ele, apanhado inapelavelmente no vácuo de Bush. Rumsfeld também sucumbiu nitidamente a isso. Na TV, naquela ocasião, parecia alguém recém-saído de uma rodada de cocaína. “Essas coisas acontecem”, disse ele, quando perguntado sobre o saque da herança mesopotâmica em Bagdá - a observação de um homem não só corrompido mas vulgarizado pelo poder. Além da linguagem corporal, desta vez, houve também a linguagem, o linguajar do poder, desde o “quero arrebentar” de Bush até seu “Que venha” - uma incitação jovial, alguns podem agora achar, à insurgência armada.

Observando isso, a aversão que se sentia estava muito longe de se limitar à estética. Muita coisa decorreu disso. E agora sabemos que uma atmosfera de unanimidade instigadora, de triunfalismo pré-guerra, se formou em torno do presidente, uma atmosfera na qual qualquer contra-argumento, qualquer indício de circunspeção, era visto como uma lamúria da fraqueza ou deslealdade. Se estivesse viva, Barbara Tuchman estaria se aquecendo para escrever um longo adendo a The March of Folly; mas nem mesmo ela poderia ter antecipado um presidente que “entrando nesse período”, “estava rezando por força para fazer a vontade de Deus”. Um corrida ao poder abençoada por Deus - não, não era um bom ambiente para dúvidas e precauções. Na ocasião, a invasão do Iraque era apresentada como uma guerra preventiva “autofinanciada” para garantir o desarmamento e a mudança de regime. Três anos e meio depois, esta é uma guerra aventureira e de proselitismo, e seu objetivo restante é a promoção da democracia.

O projeto do Iraque estava previamente condenado por três realidades históricas intrínsecas. Primeira, o Oriente Médio é nitidamente incapaz, por enquanto, de sustentar um regime democrático - pela simples razão de que seus povos votarão contra ele. Será que ninguém sussurrou as palavras, na Sala de Situação - ninguém disse o que os estudiosos estavam dizendo havia anos? A “política eleitoral” dos fundamentalistas, escreve Lewis, “ foi classicamente resumida como ´Um homem (apenas homens), um voto, certa vez`. “ Ora, na metáfora de Harris, a democracia será “pouco mais que um trampolim para a teocracia”; e que a teocracia será islâmica. Agora as urnas foram fechadas, e os resultados estão surgindo, em toda a região. No Líbano, avança o Hezbollah; no Egito, avança a fraternidade de Sayyd Qutb, a Irmandade Muçulmana; na Palestina, vitória do Hamas; no Irã, vitória do demagogo e anti-semita primitivo Mahmud Ahmadinejad. Na eleição iraquiana, Bush e Blair, pateticamente, “torceram” por Allawi, que conquistou somente 14% dos votos.

Segunda, o Iraque não é um verdadeiro país. Ele foi montado por Winston Churchill no início dos anos 30. É formado por três províncias (otomanas) separadas, sunita, xiita, curda - uma disposição que parece fadada a se reconstituir. Entre as palavras ouvidas pela administração americana, podemos incluir as de Saddam Hussein. Mesmo com um aparato de terror mais selvagem que qualquer outro na história, mesmo com armas químicas, helicópteros de combate e assassinatos em massa, mesmo com uma comprovada prontidão para “limpar”, deslocar e destruir ecossistemas inteiros, Hussein modestamente admitiu que achou o Iraque um país difícil de manter unido. Como um militar sunita comenta, os iraquianos odeiam o Iraque - ou o “Iraque”, um conceito que só lhes trouxe sofrimentos. Não há instinto nacionalista; o instinto é pela atomização.

Terceira, só o saque de Meca ou Medina teria causado mais dor ao coração islâmico que a tomada, e emporcalhamento, da capital iraquiana, sede do Califado. Não ouvimos uma única discussão, em casa, sobre o significado religioso de Bagdá. Mas tivemos algumas intimações da linha de frente dos jihadistas. Em pronunciamentos vibrando de insuflação histórica, eles falam de seu abraço jubiloso da chance de encontrar o infiel na Terra Entre os Rios. E, claro, além - em Madri, em Bali (de novo), em Londres. A aventura da Coalizão pode ter dado ao inimigo um casus belli que arderá por uma geração.

Há vastas pluralidades em todo o Ocidente sequiosas por um fracasso americano no Iraque - porque elas odeiam George Bush. Talvez elas não percebam que estão ao mesmo tempo sequiosas por uma vitória islâmica que piorará dramaticamente as vidas de seus filhos. E isso pode acontecer. Observemos guerra, não pelos olhos de Bin Laden, mas pelos olhos das artimanhas da história. Dessa perspectiva, o 11 de setembro foi uma provocação. A investida no Iraque se traduziu numa finta, e numa armadilha. Agora sabemos, de vários best-sellers de 500 páginas como Cobra II e Fiasco, que a invasão do Iraque foi incrivelmente leviana (não havia plano, nenhum plano mesmo, para a ocupação); contudo, não deveríamos nos iludir que os motivos por trás dela eram desonrosos. Esse é um tipo de tragédia familiar. A Guerra do Iraque representa um contrato gigante, não só para a Halliburton, mas também para a empresa de pavimentação chamada Boas Intenções. Devemos esperar que alguma coisa se salve disso, e que nossa posição ética possa ser reconsolidada. O Iraque foi um desvio do que está sendo sombriamente referido como a Longa Guerra. A nossas perdas fúteis de sangue, riquezas e prestígio moral, podemos acrescentar a perda de tempo; e tempo é sangue, também.

Uma idéia se apresenta sobre uma direção melhor a tomar. E curiosamente, sua atual defensora é a filha do gênio soturno por trás do desastre no Iraque: ela se chama Liz Cheney. Antes de chegarmos a isso, porém, devemos voltar rapidamente a Ayed, e seu cinto, e a alguns pensamentos serenos sobre a arte da ficção.

O desfecho com “cinto” de The Unknown Known me surgiu bem tarde, mas o cinto já estava lá, e com destaque. Todos os escritores saberão exatamente o que isso significa. Significa que o subconsciente havia feito uma sugestão polida, uma sugestão que a mente consciente levou algum tempo para ver. O cinto de Ayed, comprado por reembolso postal em Greeley, Colorado, é chamado de “RodeoMaMa”, e consiste de uma “correia de peso” e o botão do arção de uma sela. Ayed é daquela raça de homens que sustenta que um marido de fazer sexo com suas esposas todas as noites. E seu uso invariável do “RodeoMaMa” é uma das razões para o alvoroço de motim em seus casamentos.

Olhando dentro do armazém denominado Conhecidos Conhecidos, Ayed reequipa seu “RodeoMaMa”. Ele volta para casa e intima suas esposas - pela última vez. Assim Ayed consegue sua ruptura conceitual, seu desconhecido desconhecido: ele é o primeiro a trazer operações de martírio para o ambiente do próprio lar.

Eu poderia escrever uma peça tão longa quanto esta sobre por que abandonei The Unknown Known. O momento confirmatório veio há algumas semanas: a suspeita recém fortalecida de que existe em nosso planeta uma espécie de ser humano que se tornará muçulmano para perseguir o assassínio em massa por atentado suicida. Durante bom tempo senti que o islamismo estava tentando envenenar o mundo. Aqui estava um sinal de que o veneno podia pegar: podia sofrer uma mutação, como o vírus da gripe aviária. O Islã, já disse, é um sistema total, e, nessa condição, é sinistramente favorável à crítica. Mas, no islamismo, com malignidade total, com terror total e tédio total, a ironia, mesmo a ironia militante (o que a sátira é), meramente estremece e morre.

No século 20, o falecido historiador JM Roberts adotou uma posição não sentimental sobre a Revolução Chinesa. “Mais de 2.000 anos de continuidades históricas notáveis jazem atrás (dela), que, apesar de todo seu custo e crueldade, foi um feito histórico, equiparado em escala a levantes gigantescos como a disseminação do Islã, ou o assalto da Europa sobre o mundo nos primeiros tempos da era moderna.”
O custo e crueldade, segundo Juang Chang e a recente biografia de Jon Halliday, significou, talvez, 70 milhões de vidas só no período de Mao. Contudo, isso deve ser colocado na balança contra “o peso do passado” - em nenhum lugar mais pesado que na China:

“Ataques deliberados à autoridade familiar... não eram meras tentativas de um regime desconfiado para encorajar informantes e a delação, mas ataques à mais conservadora de todas as instituições chinesas. Da mesma forma, o progresso das mulheres e da propaganda para desencorajar o casamento prematuro teve dimensões que foram além de idéias feministas “progressistas” e do controle populacional; foram um ataque ao passado como nenhuma outra revolução jamais realizou, pois na China o passado significava um papel para mulheres bem inferior aos da América, da França e até da Rússia pré-revolucionárias.”

Não há impulso, no Islã, para uma reforma. E não há tempo, agora, para uma lenta ilustração. A sublevação necessária é uma revolução - a libertação das mulheres. Não será obra de uma década ou mesmo de uma geração. O Islã é um milênio mais novo que a China. Mas lembremo-nos de que a Revolução Chinesa levou meio século para alcançar todas suas aldeias.
Em 2002, o PIB agregado de todos os países árabes foi menor que o PIB da Espanha; e os Estados islâmicos ficam atrás do Ocidente, e do Extremo Oriente, em todos os indicadores de produção industrial e manufatureira, criação de emprego, tecnologia, alfabetização, expectativa de vida, desenvolvimento humano, e vitalidade intelectual. (Um exemplo oculto: em termos de posse de linhas telefônicas, a principal nação islâmica são os Emirados Árabes Unidos, listado em 33º lugar, entre Reunião e Macau.) Existe ainda a questão da tirania, da corrupção, e da falta de direitos civis e de sociedade civil. Podemos imaginar como os islâmicos se sentem quando comparam a Índia ao Paquistão, a primeira uma superpotência democrática fervilhante, a outra mal distinguível de um estado falido. What Went Wrong? (o que saiu errado?) perguntou Bernard Lewis, na extensão de um livro. A resposta geral seria o irracionalismo institucionalizado; e o foco particular seria a lógica obscura que nega ao mundo islâmico o talento e a energia da metade de seu povo. Não há dúvida de que o impulso para a investigação racional é hoje mais fraca nos homens muçulmanos comuns. Mas podemos ficar com a memória daquelas imagens do Afeganistão: as grandes ondas de mulheres correndo para a escola.

A conexão entre o fracasso manifesto e a repressão às mulheres não pode ser ignorada. E às vezes se sente que o atual xis do problema, com seu caos de inseguranças e nostalgias, é pouco mais que um furor preventivo - para precaver-se contra o abandono do último santuário do poder. O que aconteceria se gastássemos parte dos próximos U$ 300 bilhões (esta é a proposta de Liz Cheney) para elevar a consciência no mundo islâmico? O efeito seria inerentemente explosivo, porque o domínio do homem é corânico - a infalsificável palavra de Deus, tal como foi ditada ao Profeta:

“Os homens são os protetores das mulheres, porque Deus dotou uns com mais (força) do que as outras, e pelo sustento do seu pecúlio. As boas esposas são as devotas, que guardam, na ausência (do marido), o segredo que Deus ordenou fosse guardado. Quanto àquelas, de quem suspeitais deslealdade, admoestai-as (na primeira vez), abandonai os seus leitos (na segunda vez) e castigai-as (na terceira vez); porém, se vos obedecerem, não procureis meios contra elas. Sabei que Deus é Excelso, Magnânimo.' (Alcorão 4:34)

Poderemos imaginar homens marchando em defesa de seu direito de espancar suas esposas? E se isso acontecer, e daí? Será que isso conquistaria corações e mentes? Os mártires dessa revolução seriam sustentados por duas verdades óbvias: a sujeição da autoridade às Escrituras, em todo o mundo, é muito seriamente questionada; e as mulheres, por definição, não são uma minoria. Elas saberiam, também, que sua luta é um ataque heróico ao peso do passado - o peso titânico de 14 séculos.

Leitores atentos podem ter se perguntado o que é essa categoria ridícula, o conhecido desconhecido. O conhecido desconhecido é paraíso, infalibilidade da Escritura, Deus. O conhecido desconhecido é a crença religiosa.

Todas as religiões são violentas; e todas as ideologias são violentas. Mesmo o ocidentalismo, tão impecavelmente brando, tem a violência faiscando em seu interior. É por isso que qualquer sistema de crença envolve um grau de ilusão, e, portanto, não pode ser defendido pela mente apenas. Quando desafiado, ou afrontado, a resposta do crente é hormonal; e a colisão subseqüente será entre um cérebro e um ninho de gatos de glândulas. Jamais esquecerei o olhar no rosto do porteiro, no Domo da Rocha em Jerusalém, quando sugeri, talvez levianamente, que ele esquecesse algumas proibições relativas ao calendário e me deixasse entrar. Sua expressão, antes cordial e fria, virou numa máscara; e a máscara estava dizendo que matar-me, matar minha esposa e meus filhos era algo para o qual ele agora estava autorizado. Eu já sabia então que a expressão “profundamente religioso” era um grave abuso desse advérbio. Uma coisa não é profunda só porque é tudo que está lá; é mais como um verniz sobre um vazio. O islamismo milenar é uma ideologia sobreposta a uma religião - ilusão sobre ilusão. Não é meramente violência em tendência. Violência é tudo que existe ali.

Em Aubade (1977), de Phil Larkin, o poeta, ao despertar, contempla “a morte inexorável, um dia inteiro mais perto agora”?

Esta é uma maneira especial de ter medo
Nenhum truque o dissipa. A religião costumava tentar,
Este vasto brocado musical roído pelas traças
Criado para fingir que não morreremos jamais...

Muito antes, em Church Going (1954), examinando seu hábito de visitar igrejas rurais e os sentimentos que elas lhe despertavam (principalmente perplexidade e tédio), ele pôde armar uma resposta mais extensa:

Me agrada ficar aqui em
silêncio;
Uma casa séria em terra
séria ela é,
Em cujo ar misturado
todas nossas compulsões se encontram,
São reconhecidas,
e vestidas como destinos.
E isso tudo jamais pode
ficar obsoleto,
Pois sempre alguém
surpreenderá
Uma fome em si de
ser mais sério,
E gravitando com ele para esse chão,
Que, ele um dia ouviu,
era próprio para se ficar
sábio,
Quando menos pelos tantos que ali jazem.

Isso é lindamente realizado. E contém tudo que pode ser decente e racionalmente dito.

Nós admitimos que, no caso da religião, ou da crença em seres sobrenaturais, o passado pesa em, não 2.000 anos, mas em aproximadamente cinco milhões. Mesmo assim, chegou o momento de uma dose de impaciência em nosso trato com aqueles que tomariam um inocente pronome pessoal, que só estava cuidando de seus negócios, e o exaltam com uma letra maiúscula. A oposição à religião já ocupa o terreno elevado, intelectual e moralmente. As pessoas de espírito independente deveriam começar agora a reivindicar o terreno elevado espiritual também. Deveríamos ficar com Joseph Conrad:

“O mundo dos vivos contém maravilhas e mistérios suficientes como ele é - maravilhas e mistérios agindo sobre nossas emoções e inteligência de maneiras tão inexplicáveis que quase justificariam a concepção da vida como um estado encantado. Não, sou firme demais em minha consciência do maravilhoso para ser fascinado pelo mero sobrenatural, que (tome-o como quiser) não passa de um artigo manufaturado, a fabricação de mentes insensíveis às delicadezas íntimas de nossa relação com os mortos e os vivos, em suas multidões incontáveis; uma profanação de nossas lembranças mais ternas; um ultraje a nossa dignidade.

“Seja qual for meu recato natural, ele jamais condescenderá em procurar amparo para minha imaginação naquelas imaginações comuns a todas as eras e que em si bastam para encher todos os amantes da humanidade de inexprimível tristeza.” (“Nota do Autor” a The Shadow-Line, 1920).

* Martin Amis escreveu este texto para “The Observer” VOLTAR A ARTIGOS ETC

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