Véspera
Véspera
No dia 18 de setembro, estive na Casa Mário Quintana, em Porto Alegre, para participar de um bate-papo com o cientista político Francisco Weffort e com o escritor Moacyr Scliar. A propósito: já havia um certo quê pró-Yeda Crusius no ar. Estávamos ali para falar sobre a política e o Brasil contemporâneo, uma das atividades do Projeto Brasil Copesul Cultural, organizado pelo professor Fernando Schüler. Faziam parte do conjunto de eventos, além de dois debates, uma exposição, mostra de cinema e show. Impressionante o grau de mobilização dos porto-alegrenses. Há ainda um livro de ensaios, chamado Brasil Contemporâneo – Crônicas de Um País Incógnito (editora Artes e Ofícios), que integra o projeto. Assino um dos textos. Lembrei-me disso porque Scliar, numa palestra doce e douta, falou que a perplexidade era a marca do nosso tempo.
Concordei com ele, mas observei — e é o gancho deste texto — que, não sabendo jamais ser neutro, repudiando sempre a torre de marfim dos isentos, até a minha perplexidade tem lado. Penso nisso ao constatar que estamos na véspera da eleição presidencial, e só cabe uma postura aos democratas e aos que defendem o Estado de Direito: o voto contra Lula. E isso é ter lado. Mesmo que o voto contra Lula não seja um voto a favor de Alckmin, Heloísa Helena ou Cristovam. E aí está a perplexidade. É um tanto assustador nos darmos conta de que, no prazo de 15 meses, dois grandes escândalos puseram a nu o governo, revelaram a sua essência autoritária, expuseram a carranca de um projeto de poder que é a negação da democracia representativa, da tolerância, da alternância de poder, da convivência com o outro.
O cinismo, a desfaçatez, a trapaça política assumem dimensões inéditas. O Brasil já teve o “rouba, mas faz” — mas ainda não havia conjugado esses dois verbos na primeira pessoa: “Roubo, mas faço”. O Brasil já teve gente sem nenhuma vergonha no poder. Os sem-vergonhas, no entanto, tinham vergonha de não ter vergonha. Hoje, a sem-vergonhice se jacta de sua esperteza, é vista como ato de resistência. Antes, acuados por denúncias, muitos inocentes, talvez por isso mesmo, se deixavam intimidar. Hoje, os culpados, flagrados, saem acusando, com o dedo em riste. Olhem o caso da divulgação das fotos da dinheirama. Submetida a investigação ao descarado e confesso interesse eleitoral, o ministro Tarso Genro não se vexa de vir a público para denunciar uma conspiração dos adversários.
Sim, estamos todos perplexos. Uma perplexidade que já é longa. Que já voltou a sua face indignada contra a própria oposição para indagar: “A aí? Por que vocês são tão lentos? Por que não se mexem? Por que não fazem política com mais clareza, unidade, determinação? Por que permitiram que chegássemos aqui e não denunciaram antes que o rei estava nu?” Sim, todas essas são perguntas pertinentes, são indignações justas. Mas nada supera o fato de sabermos que as instituições estão se vergando sob o peso da baixa esperteza, da malandragem, do sofisma, da mau-caratismo. Nada supera o asco de sabermos que a miséria, mantida cativa do assistencialismo e do eleitoralismo, é o combustível da máquina que tentou e tenta assaltar o Estado de Direito.
Os golpistas denunciam o golpe.
Os conspiradores denunciam a conspiração.
Os ladrões das esperanças alheias (também delas) denunciam o roubo da esperança.
Os trapaceiros denunciam a trapaça.
Os imorais denunciam a imoralidade.
Os vigaristas denunciam a vigarice.
Estamos perplexos, todos nós. Mas, nessa disputa, é preciso ter lado.Tentaram governar sem oposição. Tentaram fraudar a vontade das urnas. Tentaram transformar inocentes em culpados. Tentam agora transformar os culpados em vítimas de injustiças que seriam histórias, só reparadas com a intervenção de um demiurgo, no comando de um partido redentor. Digam a si mesmos e a todo mundo: quem deu anuência à operação do dossiê fajuto é capaz de qualquer coisa. As instituições são hoje reféns do autoritarismo, da irresponsabilidade, da vilania. Por perplexos que somos, certamente pensamos coisas distintas. E nem sempre são minudências, detalhes desprezíveis. Mas isso fica, com efeito, para depois.
Agora, interessa constatar: a sr. Luiz Inácio não deveria ter sido candidato. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, que tome posse se a lei permitir. Empossado, devemos recorrer às instâncias legais para impedi-lo de governar. Não, a gente não é Carlos Lacerda. Nem Lula é Getúlio Vargas. Essa farsa histórica também não vai vingar.
Por Reinaldo Azevedo VOLTAR A ARTIGOS ETC