Saturday, March 06, 2010

Justiça seja feita

Cinema


Jeff Bridges, o mais autêntico ator americano, concorre pela quinta
vez ao Oscar com Coração Louco. Mas agora, finalmente, é o favorito


Isabela Boscov

Everett Collection/Grupo Keystone
A HONRA OU A VIDA
Maggie e Bridges: diante de uma mulher assim, o uísque e a rebeldia já não parecem tão confortadores quanto antes


Existem atores aos quais é um prazer assistir pela perícia e inteligência formidáveis com que eles entram em um personagem - como Daniel Day-Lewis ou Tommy Lee Jones. E existem atores aos quais é um prazer assistir porque é impossível distinguir em seu desempenho qualquer sinal de técnica, trabalho ou esforço. A rigor, aliás, nem se parece estar diante de um desempenho: durante duas horas, eles são aquela pessoa. Nessa categoria, não há exemplo melhor que Jeff Bridges, que Pauline Kael (1919-2001), a decana da crítica americana, proclamou como o mais natural e autêntico ator da história do cinema. Pauline adorava emitir julgamentos definitivos, mas continuava a emiti-los porque em geral acertava em cheio. De Bridges, ela disse isso em 1973, apenas dois anos depois de ele ter se lançado com A Última Sessão de Cinema. Nesses quase quarenta anos, o ator não fez outra coisa que não dar-lhe razão - poucas vezes mais do que em Coração Louco (Crazy Heart, Estados Unidos, 2009), que está desde sexta-feira em cartaz no país e rendeu a Bridges sua quinta indicação ao Oscar. Pela primeira vez, porém, ele tem chances indiscutíveis de vitória.

No filme do diretor e roteirista Scott Cooper, ele é Bad Blake, um cantor e compositor de música country que outrora foi uma lenda - no presente, muito desgastada pelas quantidades prodigiosas de álcool que consome, pelos muitos inimigos que fez (em alguns casos, o antagonismo está somente em sua cabeça) e pelo temperamento espetacularmente contendedor. Blake percorre longas distâncias no Sudoeste americano, de cidade em cidade, para se apresentar em boliches, bares e outros palcos melancólicos. Não é, contudo, uma figura patética; é um homem que abraçou a própria decadência e fez dela uma marca de honra e de insubmissão. Não surpreende, assim, que uma mulher jovem e direta como a repórter Jean (Mag-gie Gyllenhaal) se sinta atraída por ele. E é perfeitamente verossímil também que, por causa dela, Blake procure se reerguer e, ao mesmo tempo, sendo quem é, sabotar a tentativa: esse é um filme pequeno e convencional, mas que nunca deixa de soar verdadeiro.

Essa legitimidade emana de Bridges, cujo talento particular, como Pauline assinalara, é construir seus personagens de dentro para fora. Blake vem marcado por tantos particulares e lembranças, tantos gestos tornados inconscientes pelo hábito, que é como uma casa em que o ator morasse há muito tempo e pela qual pudesse andar de olhos fechados. Cooper escreveu o papel para Bridges, mas quase ficou na mão: ele confessadamente não é de pegar no batente. Só quando soube que seu amigo T Bone Burnett, uma lenda das trilhas sonoras, comporia as canções, topou o trabalho. Ainda que, como de hábito, mal se possa adivinhar que ele está trabalhando.



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