Saturday, March 06, 2010

A inglesa dos sertões


Um balanço da carreira de Maureen Bisilliat,
fotógrafa pioneira — e soberba — dos rincões do Brasil


Marcelo Marthe

Fotos Maureen Bisilliat/Acervo IMS
DO MANGUE À MANGUEIRA
Registros da vida brasileira captados por Maureen Bisilliat nos anos 60 e 70: o vaqueiro Manuelzão (à esq.), que inspirou o personagem de Guimarães Rosa; a catadora de caranguejos da Paraíba (acima); índio do Xingu (ao lado, no centro da página), onde ela passou vários períodos com os irmãos Villas Boas; e o sambista carioca Cartola (à dir.)



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Vestido de maneira impecável para um culto de domingo, um pastor evangélico que passava por um embarcadouro no litoral da Paraíba não se conteve ao avistar uma mulher de visual bicho-grilo chafurdando na lama do manguezal para fotografar as catadoras de caranguejos locais. “Aquilo não é uma fotógrafa, aquilo é um homem”, disse. Isso ocorreu em 1970, durante a realização de um dos ensaios mais famosos da fotógrafa Maureen Bisilliat — e que naquele ano seria tema de uma reportagem de impacto de Realidade, então um dos títulos da Editora Abril (que publica VEJA). O episódio sintetiza a vida e a obra de Maureen: num tempo em que a emancipação feminina mal se desenhava no país, ela se lançou no desbravamento do chamado “Brasil profundo” por meio da fotografia. Mulher forjada na contracultura dos anos 60, Maureen percorreu, a partir daquela década, regiões remotas de Minas Gerais e do Nordeste para registrar seu cotidiano e manifestações populares. Viveu, ainda, períodos em meio aos índios do Xingu. “Meu prazer era viajar de ônibus, sentindo o vento bater na cara”, diz. Com o passar do tempo, esse trabalho só teve sua força realçada — como atesta uma retrospectiva em cartaz desde a semana passada na Galeria de Arte do Sesi, em São Paulo (e que foi exibida no Rio de Janeiro em 2009).

Nascida na Inglaterra, em 1931, filha de um diplomata argentino e de uma pintora de ascendência irlandesa, Maureen passou a infância rodando por diversos países. Aos 21 anos, fixou-se no Brasil com seu primeiro marido, um negociante de algodão — e jamais se desligaria daqui. “Eu levava uma vida sem raízes. Só no Brasil fui encontrar isso”, diz (ela se naturalizaria em 1963). Maureen, hoje com 79 anos, deu seus passos iniciais na fotografia no interior paulista. E encontrou na literatura nacional o estímulo para seus périplos pelos rincões. Nos anos 60, frequentou a casa de Jorge Amado na Bahia — e, inspirada por ele, realizou ensaios com pescadores e outros tipos do litoral e do sertão do estado. Nesse mesmo período, ganhou fama graças a um projeto em que, instruída por Guimarães Rosa em pessoa, fotografou paisagens e personagens de seus livros — como o vaqueiro Manuelzão. O escritor chamava Maureen de “irlandesa cigana”, em razão das saias longas e dos cabelos pela cintura.

Maureen considera os anos em que atuou como fotojornalista cruciais na moldagem de seu estilo. Além de atuar em Realidade, ela fez trabalhos antológicos para outra revista da Abril, a Quatro Rodas — como um especial sobre o Rio no qual retratou os compositores Pixinguinha e Cartola. Em 1982, voltaria a colaborar para a publicação, num ensaio sobre a China comunista. Com formação em pintura (ela estudou com o surrealista André Lhote em Paris), Maureen prima pelo uso apurado da luz e pelo rigor na composição das cenas. Mas talvez o maior valor de sua obra — um acervo de 16 000 imagens pertencentes desde 2003 ao Instituto Moreira Salles — resida mesmo em seu pioneirismo. Ao retratar festas populares e ofícios artesanais, ela eternizou atividades que quase já não existem no interior — e desbravou uma seara da fotografia hoje barateada pelos arautos de certa “estética da pobreza”. Seis anos atrás, ao retornar às aldeias do Xingu que fotografou em viagens com os sertanistas Orlando e Cláudio Villas-Boas, Maureen emocionou-se ao ver que, após trinta anos, os índios ainda se lembravam dela. “Eu entrei na mitologia deles. É uma coisa muito bonita”, diz. Nos últimos anos, Maureen trocou a fotografia pela videoarte. Mas conservou seu jeito de ser: “Sempre fui — e continuarei sendo — uma hippie”.

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