Saturday, February 27, 2010

Ela se diverte


Desde que estreou no cinema, há três décadas, Meryl Streep é um paradigma
de excelência. Mas hoje ela não é só admirada, como antes. Aprendeu a
ser leve e calorosa e fez o que ninguém imaginava ser possível para
uma atriz de 60 anos em Hollywood: virou campeã de bilheteria


Isabela Boscov

Andrea Barbe/Corbis/Latinstock
DO JEITO QUE ELA É
Meryl, que no dia 7 concorre pela 16ª vez ao Oscar: a técnica é o primor de sempre e a aparência é sem retoques. Só a espontaneidade não era natural, e veio com o tempo



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Desde a sua primeira personagem de destaque, em O Franco-Atirador, de 1978, Meryl Streep estabeleceu uma reputação que nunca esteve perto de ser abalada: a de ser um dos talentos mais fulgurantes da história do cinema. Não havia papel que ela não pudesse fazer; não havia idioma que ela não aprendesse ou aparência que não fosse capaz de adquirir. Meryl interpretava mães que abandonam filhos (Kramer vs. Kramer, 1979), mães que escolhem qual filho entregar aos nazistas (A Escolha de Sofia, 1982), aristocratas europeias que se acham donas de tribos africanas (Entre Dois Amores, 1985), alcoólatras terminais (Ironweed, 1987), mães suspeitas de assassinar filhos (Um Grito na Escuridão, 1988). E, em vez de colher antipatia, colhia indicações a prêmios e aclamação. Mas não tietagem. Sua beleza patrícia não é bem a matéria-prima de que se fazem as fantasias. Seu ar era meio distante, cortante até, e sua técnica extraordinária chegava a intimidar. Meryl, enfim, era perfeita demais e calculada demais. Era fácil admirá-la; gostar dela, nem tanto. Hoje, entretanto, é preciso puxar pela memória para lembrar que ela um dia provocou esse tipo de reação. Pouco a pouco, de uns quinze anos para cá, ela foi se tornando uma das atrizes mais queridas do cinema americano. E, precisamente há quatro anos, virou algo que mulher nenhuma na meia-idade espera ser em Hollywood: uma campeã de bilheteria, que bate fácil rivais bem mais jovens (veja o quadro). Meryl, é evidente, se destaca porque nunca deixou diminuir as qualidades que já possuía. Mas está nessa situação privilegiada porque aprendeu a única coisa que ainda não sabia sobre atuar: a se divertir, e divertir-se muito. Até com coisas de gosto duvidoso como Simplesmente Complicado (It’s Complicated, Estados Unidos, 2009), desde sexta-feira em cartaz no país.

Nessa espécie de catarse cômica para mulheres trocadas por outras com a metade de sua idade, Meryl é Jane, há dez anos divorciada de Jake. Ele se casou com a amante morena e esguia; ela ficou sozinha. Na festa de formatura do filho do meio, os dois se encontram num bar de hotel. Drinque vai, drinque vem, terminam na cama, onde Jake (Alec Baldwin, outro que está em sua melhor fase) descobre como é bom não ter de correr atrás de alguém com o dobro da energia e, arrebatado, lembra-se de como a mulher que ele deixou é espirituosa, encantadora e bonita. Não se exige nenhum esforço de imaginação para entender a recaída de Jake. Meryl, nesta sua fase tão calorosa, faz de Jane uma personagem pela qual é inevitável que tanto ele como a plateia se apaixonem. Não obstante o roteiro um bocado ordinário da diretora Nancy Meyers, cheio de vulgaridades gratuitas, Meryl faz tudo funcionar - até aquelas cenas que hoje provavelmente podem ser adquiridas como formulário em papelarias, em que um grupo de amigas se encontra para beber e fofocar. (Só uma coisa está além de sua habilidade: tornar crível seu flerte com o personagem de Steve Martin, tão abotoadinho que a ideia de um contato íntimo entre os dois causa certo pavor.)

Divulgação
PRAZER DESCOMPLICADO
Meryl e Baldwin: catarse para mulheres trocadas por outras com a metade de sua idade


Simplesmente Complicado
, portanto, é um filme muito inferior à sua estrela. Mas não é o primeiro do qual se pode dizer isso; mais importante e curioso é que se trata exatamente do tipo de escolha com que ela reformulou sua carreira e ganhou a espontaneidade e leveza que lhe faltavam. No fim da década de 80, depois que sua segunda menina com o escultor Don Gummer nasceu (ela tem um filho e três filhas), a atriz decidiu que ficara difícil demais conciliar o trabalho com a família. Passou, então, a mirar em projetos com os quais ela pudesse lidar como um emprego, do qual se volta para casa a tempo de preparar o jantar. Fez bobagens como Ela É o Diabo, A Morte Lhe Cai Bem e Rio Selvagem, foi acusada de se vender ao sistema e não deu a menor bola: estava aprendendo, não sem dificuldade, a exercitar algum humor e despretensão. Em 1995, finalmente, caiu-lhe nas mãos o papel que apontaria os seus instintos artísticos em uma nova direção - o da dona de casa frustrada que vive uma brevíssima paixão com um fotógrafo, em As Pontes de Madison, no qual Clint Eastwood, seu parceiro de cena e diretor, arrancou dela uma espontaneidade e um prazer descomplicado que, até ali, lhe escapavam.

Meryl continua obsessivamente técnica, e muitos dos projetos em que se engaja exigem dela todo aquele arsenal que desde o início a distinguiu - como o fantasma de Ethel Rosenberg emAngels in America, a jornalista que embarca numa aventura com um caipira desdentado emAdaptação ou a freira fanática de Dúvida. Mas são essa espontaneidade e esse prazer, mais a segurança da idade (60 anos bem conservados e orgulhosamente sem retoques), que fizeram dela um sucesso sem precedentes. O Diabo Veste Prada a tornou um ícone. Mamma Mia!, que sem ela seria insuportável, é o único filme encabeçado por uma atriz que está entre os cinquenta campeões mundiais de bilheteria. E, por Julie & Julia, ela concorre neste ano pela 16ª vez ao Oscar, um recorde absoluto entre intérpretes. Se sair vitoriosa (seria a terceira vez), provavelmente vai dar o show de sempre, comparecendo à cerimônia com um vestido inexplicável, óculos de leitura e penteado de quem terminou a faxina às pressas. Meryl já não tem a menor necessidade nem vontade de impressionar - e por isso mesmo fica cada vez mais impressionante.


Fotos Kevyn Winter/Getty Images, Lester Cohen/Wireimage/Getty Images e Soerem Stache/Other Images

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