A Força Expedicionária Brasileira
Eles parecem uma tropa. Vestem reluzentes uniformes, cada um ocupa sua posição determinada na unidade de infantaria, cumprem com rigor as ordens do comandante em chefe e quase não falam. Protegidos em seu QG ou entrincheirados, comportam-se como se estivessem em campanha – não futebolística, na disputa de um campeonato mundial, mas numa operação militar. Além de enfrentarem os adversários encarados como inimigos – primeiro a Coreia do Norte, batida na estreia de terça-feira passada pelo magro e preocupante placar de 2 a 1, neste domingo a Costa do Marfim e na próxima sexta Portugal –, eles foram longamente instruídos sobre como defrontar o que seu superior hierárquico considera outro tipo de obstáculo: a imprensa. Nada de ficar dando entrevistas ou aparecer na TV. Só podem abrir a boca, sem nenhuma crítica ao batalhão, dentro de um código rígido. A cada dia, como num rodízio de sentinelas, dois deles são designados para a missão de participar de uma coletiva de imprensa, em que cerca de 200 jornalistas, mantidos a distância em suas cadeiras, disputam o direito de formular perguntas durante meia hora. Na véspera e depois das partidas, cumprindo uma determinação da Fifa, todos passam por uma espécie de corredor polonês em zigue-zague, entre o vestiário e o ônibus, a chamada zona mista, e os que concordarem param diante dos repórteres que se acotovelam. Alguns seguem marchando, como fez o lateral Maicon após a estreia, com a justificativa de que estivera na coletiva anterior. O atacante Robinho "ouve" a primeira indagação sem tirar do ouvido o fone do iPod. O comandante, esse, atravessa o corredor de nariz erguido, passos cadenciados, um, dois, feijão com arroz. Suas únicas aparições são nas tais coletivas obrigatórias, quando dá espetadas com sua baioneta e afirma que essa "é uma forma nova de trabalhar". Na hora dos treinamentos, ninguém chega perto da soldadesca nem da intendência – roupeiro, massagista, auxiliares, igualmente proibidos de se pronunciar. Com frequência, são manobras secretas. Ou, ainda na definição do comandante, privadas. "Manda quem pode, obedece quem tem juízo", comentou o goleiro Júlio César na coletiva de sexta passada. É assim que vem sendo a vida dos pentacampeões mundiais em seu teatro de operações na África do Sul. Aqui o que menos importa são as dificuldades de trabalho dos jornalistas. A questão é que, ao trancar os jogadores, impedir o acesso aos treinamentos e limitar ao máximo as entrevistas, o comandante Dunga, radicalizando seu maquiavelismo, transmite a seguinte mensagem: assistam aos nossos jogos, torçam pela nossa vitória, mas por favor não nos importunem com críticas e pedidos. Faz com isso uma inversão de papéis, pois não são os jornalistas que ele afasta, mas todos os brasileiros que acompanham apaixonadamente a seleção a distância e ficam privados de informações. Entre uma Copa e outra, o futebol é alvo de interesse exclusivo dos torcedores de clube. Durante os trinta dias do Mundial, porém, é a nação de 193 milhões de habitantes que veste a camisa amarela. Jamais ocorreu nada semelhante na história dos canarinhos. "Na Copa de 70, três vezes por semana, dois jornalistas almoçavam com a delegação e falavam com quem queriam", lembra o ex-lateral Carlos Alberto Torres. "É preciso manter essa boa relação, porque o país inteiro está interessado em acompanhar o que acontece com nossa seleção." Em competições passadas, o técnico e os jogadores davam entrevistas diariamente, antes e depois dos treinos. Havia exagero, é claro, com a publicação de uma avalanche de notícias e uma batelada de irrelevâncias, embora nesse período leitores, telespectadores, ouvintes e internautas fiquem curiosos para saber se a dor nas costas de Júlio César poderia impedi-lo de atuar, se o meia Kaká comentou com a mulher sua falta de ritmo de jogo ou se o atacante Luis Fabiano estaria preparando uma nova coreografia para comemorar os gols. Durante a semana passada, foi impossível apurar coisas banais como essas. No período mais duro do regime militar, com a vigência da censura e do AI-5, os ditadores não davam entrevista. Dentro da seleção brasileira, chefiada na Copa de 70 por um brigadeiro e presidida em 1978 por um almirante, chegaram a trabalhar na comissão técnica o capitão Cláudio Coutinho, que seria o treinador "campeão moral" na Argentina, o major Raul Carlesso e mais três militares. "Mesmo assim, em plena ditadura, a liberdade era maior do que hoje", compara o experiente comentarista esportivo Orlando Duarte. "Os jornalistas passeavam pelo hotel da seleção à vontade e entrevistavam quem bem entendiam. Nas catorze Copas que cobri, nunca vi nada parecido com o que acontece agora." Com reportagem de Kalleo Couraveja
Trancada, isolada e muda, a seleção parece uma tropa
que foi à guerra e esquece que a nação toda quer saber
o que ela faz e está pensando
Carlos Maranhão, de JohannesburgoAndré Chaco/Fotoarena/AE SOLDADOS DE DUNGA
Os jogadores no seu campo de batalha, antes de enfrentar a Coreia do Norte.
"Manda quem pode, obedece quem tem juízo", diz o goleiro Júlio César