Tragédia na estrela dos Andes
O Chile é uma nação admirável. Duas décadas de consenso político em torno da manutenção da democracia e da economia de mercado o colocaram na posição de o primeiro país sul-americano com boas perspectivas de ser, em poucos anos, reconhecido como de Primeiro Mundo. O país precisará agora de um esforço semelhante para se reconstruir depois do terremoto que devastou um quinto de seu território na madrugada de 27 de fevereiro. O tremor, de 8,8 pontos na escala Richter, foi o quinto mais intenso já registrado no planeta. Na última sexta-feira, o governo já tinha identificado 452 mortos. O número de feridos era estimado em 500 e o de desabrigados em 2 milhões. Na região central do Chile, a mais rica e produtiva, cidades inteiras desapareceram. Em três minutos, 500 000 moradias ruíram. Muitas edificações erguidas de acordo com normas técnicas para não ceder a abalos não resistiram à força dos tremores. Com população menor apenas que a da capital, Santiago, a cidade de Concepción foi reduzida a escombros. O sismo, com epicentro no Oceano Pacífico, provocou um tsunami com ondas de 40 metros. Vinte minutos depois do terremoto, o maremoto varreu ilhas e 200 quilômetros do litoral sul do país. Em Dichato, um balneário de Concepción, oito em cada dez casas foram destruídas. Em Constituición, 300 pessoas podem ter sido tragadas por ondas de 15 metros de altura. No fim da semana passada, ainda não havia sido possível avaliar com precisão os estragos no Arquipélago Juan Fernández, deixado praticamente sem meios de se comunicar com o restante do Chile. Não havia notícias de sessenta turistas desaparecidos na Ilha de Robinson Crusoé, que leva esse nome por ter sido o refúgio do náufrago que inspirou o clássico romance do inglês Daniel Defoe. A terra voltou a tremer várias vezes na semana passada. Até a última sexta-feira, os sismógrafos haviam registrado mais de cinquenta desses eventos, muitos deles com intensidade superior a 6 pontos na escala Richter. O Chile está localizado em uma região chamada anel de fogo do Pacífico. Essa falha geo-lógica que circunda o oceano registra a mais intensa atividade vulcânica e também a maior frequência de terremotos do planeta. Não bastasse essa circunstância geográfica, o país assenta-se na borda de uma placa, a Sul-Americana. O atrito entre essa placa e sua vizinha, a Nazca, leva ao acúmulo de quantidades brutais de energia. É essa energia que provoca os terremotos. No Chile, eles são especialmente potentes, de grandes proporções e se repetem em períodos que variam de 25 a trinta anos. Em 1960, o país foi vítima do mais forte abalo já registrado no planeta, com 9,5 pontos na escala Richter. Por causa desse passado, da solidez de sua economia e de suas instituições, os chilenos esperavam que o país estivesse bem preparado para enfrentar o próximo cataclismo. Os eventos da semana passada mostram como é difícil para qualquer país reagir com prontidão a um megaterremoto. A devastação foi um arranhão tardio na confiança da presidente Michelle Bachelet. Nesta semana, usufruindo a aprovação de sete em cada dez chilenos, ela entrega o cargo a seu sucessor eleito. Sua equipe já reconheceu que subavaliou as consequências do primeiro abalo e, por isso, não alertou a população costeira sobre os riscos de maremoto. Outro sinal de que o governo não se deu conta da extensão da catástrofe foi a demora em ajudar as vítimas. Foram necessários quatro dias para que os desabrigados das províncias de Maule e Biobío, a 500 quilômetros de Santiago, começassem a receber carregamentos de água e comida, que ainda estão racionados. Há apenas 45 dias, o governo chileno deu sinal de eficiência maior ao enviar um avião com mantimentos para o Haiti no dia seguinte ao do terremoto que destruiu Porto Príncipe. As autoridades também não foram capazes de prever a onda de banditismo que se seguiria à catástrofe. Cidadãos esfomeados e criminosos se entregaram aos saques em Maule e em Biobío. Na sexta-feira, na Ilha Rocuant, José Luiz Fonte Clara, de 37 anos, esperou os soldados deixarem uma indústria de peixe congelado para roubar o almoço. "Quando se tem fome, não é crime pegar comida", disse Fonte Clara a VEJA. Outros aproveitaram para pilhar casas. Muitos moradores se armaram de porretes e montaram barricadas para enfrentá-los. "Só passa quem mora na rua", informou o engenheiro Andréz Gonzalez, de 25 anos. Convocado para restabelecer a ordem, o Exército só chegou um dia depois e impôs um toque de recolher que no fim de semana ainda se estendia por dezoito horas do dia. Nesse período, só podia circular quem dispunha de salvo-conduto. Assolada pelo terremoto e atormentada pelos tremores seguintes, a economia do Chile estancou. Os prejuízos podem alcançar 30 bilhões de dólares, ou 20% da riqueza produzida anualmente no país. A estimativa oficial de crescimento do produto interno bruto neste ano caiu de 4% para 1%. Cerca de metade das empresas chilenas sofreu algum tipo de dano, o que impactará a balança comercial do país. A extração de cobre, o principal produto de exportação, minguou. A Arauco, a maior indústria chilena de celulose, deixará de entregar 90 000 toneladas do produto. Um quarto da capacidade instalada do setor pesqueiro foi perdido. Não se sabe ainda o efeito do desastre nas lavouras da região, que respondem por 76% da safra chilena. A indústria de vinhos, a quinta maior do mundo, projeta prejuízos de 250 milhões de dólares. Boa parte do estoque da bebida que repousava em tonéis foi perdida, assim como equipamentos. Três das onze vinícolas da Concha y Toro foram destruídas. Na última sexta-feira, 17% da população de seis das doze províncias chilenas continuava sem eletricidade nem água. Um dos poucos segmentos da economia que devem crescer neste ano é o de construção civil, que receberá a maior parte de um fundo soberano que o Chile montou há 24 anos para poupar parte dos lucros decorrentes da exportação de cobre. O saldo atual do fundo alcança 18 bilhões de dólares, que, segundo o governo, devem ser usados para recuperar a infraestrutura. Estradas, redes de energia, comunicações e terminais foram seriamente avariados. Os traços de destruição são visíveis até Santiago, que fica a 325 quilômetros de distância do epicentro do terremoto e tem prédios construídos sob normas de engenharia para enfrentar os abalos sísmicos. Para evitar desabamentos, as estruturas das edificações contêm quantidades extras de ferro. As fundações dos edifícios são feitas com materiais mais flexíveis, como aço. Os prédios mais novos possuem amortecedores na base e, em alguns casos, até nas paredes. Por isso, muitas torres envidraçadas permaneceram intactas. Apesar desses cuidados, três viadutos desabaram. Dois deles ligavam a cidade ao aeroporto. Devido aos estragos, o terminal de passageiros ficou fechado por dois dias e, agora, opera com capacidade reduzida. O principal acesso à capital passou a ser por terra. Fernando Cayupi, um representante comercial de 51 anos, estava no Uruguai quando soube do terremoto. Para voltar a Santiago, onde vive sua filha, Mallen, de 21 anos, ele precisou viajar até a fronteira do Chile com a Argentina e lá tomar um ônibus até a capital. "Não me senti tranquilo enquanto não a vi", disse Cayupi a VEJA. Pelo menos trinta prédios de Santiago sofreram avarias severas. Metade deles tinha sido construída há menos de dez anos. Agora, parte deles será demolida. O caso mais emblemático é o do edifício Central Park. Com dezenove andares e 259 apartamentos, ele não caiu, mas se inclinou 30 centímetros. Seus moradores foram obrigados a abandoná-lo e, agora, exigem uma indenização da construtora. Inaugurado há apenas três anos, o condomínio Sol Oriente, com seus dezoito andares e 300 apartamentos, terá de ficar desabitado para reparos por, no mínimo, dez meses. Apesar desses sinais de destruição, a boa infraestrutura chilena permitiu que a população da capital retomasse com rapidez a rotina. Na última quarta-feira, as escolas reabriram. A reconstrução do país será a primeira tarefa de Sebastián Piñera, que substitui Michelle Bachelet na Presidência nesta quinta-feira. O futuro presidente elegeu-se prometendo estimular a criação de empregos. O terremoto o fez mudar a direção. Mesmo com os 18 bilhões de dólares do fundo soberano, as previsões oficiais são que o Chile levará de três a quatro anos para recompor sua infraestrutura. Piñera anunciou que constituirá uma comissão de engenheiros e empreiteiros para ajudá-lo a planejar e executar as obras de reconstrução. Neste ano, ele pretende se amparar na construção civil para evitar estragos ainda maiores na economia e a elevação do desemprego. Tem uma tarefa enorme pela frente. Exemplo de êxito econômico e institucional na América Latina,
o Chile tem sua região mais rica esmagada por um terremoto
seguido de tsunami. A catástrofe devastou a economia,
a infraestrutura e até as relações sociais
Igor Paulin, de ConcepciónMartin Bernetti/AFP Destroços de uma cidade
No dia seguinte ao da catástrofe, os chilenos tentaram, sem sucesso,
retomar a rotina em Talcahuano, devastada pelo tsunami• Quadro: A fúria do planeta • Em profundidade: Gráficos, reportagens e vídeos Fotos Daniel Garcia, David Lillo/AP e Geraldo Caso/EFE/Ag. O Globo Devastação e caos
O tsunami empurrou os navios ancorados no Porto de Talcahuano para as ruas da cidade. Símbolos da eficiente infraestrutura chilena, os viadutos desabaram nas imediações de Santiago. Cidadãos famintos aliaram-se a criminosos para saquear supermercados em Concepción, a segunda maior cidade do ChileSobreviventes do maremoto
Fotos Fernando Cavalcanti Denunciados
Garotinho e Rosinha: contratos fajutos e empresas-fantasma
"Meu irmão desapareceu no tsunami. Não acredito que ele esteja vivo. Só espero encontrar o corpo e poder realizar um funeral digno. O pior é que sua morte poderia ter sido evitada se ele tivesse noção do que estava se passando por aqui. Um policial me contou que o encontrou pouco depois do tremor e lhe disse para ir para as partes mais altas, porque iam aparecer ondas enormes. Ele deu de ombros e continuou onde estava, a uma quadra do mar. Agora, preciso seguir e cuidar de minha mulher, Cecília, da mãe dela, Vitória, e de outros quinze parentes que perderam a casa."
Patrício Dunn, 41 anos, pescador de DichatoSobreviventes do maremoto
"Minha mulher e eu dormíamos quando uma parede do quarto foi ao chão. Os tijolos caíram para fora da casa. Agora, tento proteger dos saqueadores o pouco que me restou. Juntei forças com vizinhos e nos revezamos durante a noite. Aqui, virou cada um por si, cada qual defendendo o seu bando. É estranho pensar que uma semana atrás eu estava na minha mercearia e, agora, estou com um porrete e disposto a enfrentar qualquer um que ouse passar perto de minha casa. Minha loja foi destruída. Meu carro virou sucata. Ninguém vai tomar o pouco que me restou."
Hugo Troncoso, 53 anos, comerciante de Concepción
Com reportagem de Júlia de Medeiros