Sergio Marchionne
Os automóveis tornaram-se vilões do ambiente. Essa imagem é justa? Quais seriam elas? Quando teremos um carro ecologicamente correto? Mas esse custo não pode diminuir com o tempo? Não seria melhor investir no transporte coletivo e incentivar meios de locomoção menos poluentes? Como então convencer as pessoas a usar menos os seus carros? De onde estão vindo os maiores avanços nos carros? Os carros tendem a ficar menores? Qual o efeito da crise financeira sobre a indústria automobilística? Se o negócio é tão arriscado, por que a Fiat decidiu entrar no mercado americano? Mas por que essa decisão só foi tomada agora? A participação na Chrysler veio da necessidade da Fiat de ser uma montadora global? Como o Brasil se encaixa na estratégia mundial da Fiat?Seremos apenas cinco
O presidente mundial da Fiat diz que os avanços tecnológicos
vão prolongar a era dos motores de combustão e prevê que
sobrarão poucos fabricantes mundiais de automóveis
Luís Guilherme BarruchoLeo Drumond/Nitro "Os elétricos ainda não são economicamente viáveis. Mesmo que a tecnologia avance, o motor de combustão terá vida longa"
Esqueça os carros elétricos. O automóvel ainda será movido a motor de combustão por muito tempo. Esse motor será, a cada ano, mais econômico, pulverizando a barreira atual de 24 quilômetros por litro de gasolina. Os carros tendem a poluir menos e, com o uso intensivo da eletrônica de bordo, da internet e dos sinais de satélite, eles praticamente não mais se envolverão em colisões nem provocarão engarrafamentos. Esse é um resumo do pensamento do ítalo-canadense Sergio Marchionne, o presidente mundial da Fiat. Há seis anos no cargo, ele conseguiu tirar a Fiat do vermelho e tenta agora reerguer a americana Chrysler, controlada pela montadora italiana desde 2009. Em visita ao Brasil, Marchionne falou a VEJA na semana passada, dias antes de inaugurar a maior fábrica do mundo da Case New Holland, unidade de máquinas agrícolas do grupo, localizada em Sorocaba, no interior de São Paulo.
Considero injusto responsabilizar os carros por todos os males da humanidade. Há outras formas de poluição cujos efeitos são muito mais devastadores. Além disso, se compararmos os índices de emissão de gás carbônico e óxido nitroso dos automóveis de dez anos para cá, verificaremos uma redução drástica nesses valores. Em 1998, os principais fabricantes assinaram, voluntariamente, um acordo que estabeleceu um limite para as emissões de poluentes na Europa. Os governos também têm feito pressão nesse sentido. Os Estados Unidos, que são os maiores poluidores mundiais, tornaram as metas de eficiência mais rigorosas. Não há dúvida de que a indústria entende o problema e tem investido para buscar soluções.
A saída não partirá unicamente da indústria automotiva. Uma solução definitiva inclui a participação das montadoras, dos fornecedores de combustível e dos governos, que devem determinar limites mais severos para a emissão de poluentes e punir aqueles que os infringirem. Para evitar congestionamentos, os governos não podem simplesmente decretar, da noite para o dia, que as pessoas terão de deixar o carro em casa. Eles precisam investir mais em infraestrutura adequada. De nossa parte, a tarefa é aprimorar a tecnologia visando a reduzir o impacto provocado pelos carros no cotidiano das cidades e no ambiente.
O que é um carro ecologicamente correto? Um veículo que não polui? Isso só é possível em dois casos: ou em um carro movido a eletricidade ou movido a hidrogênio. Também se pode optar por um automóvel parcialmente movido a combustão e que polua menos, como é o caso dos híbridos. Mas tudo isso tem um custo - e ele deverá ser pago pelo consumidor. Nada é de graça. Essas tecnologias limpas ainda custam o dobro das tradicionais. Digamos que, mesmo contrariado, eu venha a produzir um carro desses e ofereça ambas as versões ao consumidor. O modelo é exatamente o mesmo, mas o preço do movido a energia limpa é o dobro do daquele a combustão. Qual será a reação do cliente? Ele comprará a versão mais barata, claro. Os carros elétricos ainda não são economicamente viáveis.
Sim. Mas há barreiras que serão difíceis de transpor, ao menos nos próximos anos. A maior delas é a retenção de energia na bateria. Como é possível armazená-la e fazê-la durar? Hoje, um carro elétrico percorre 100 quilômetros e é obrigado a parar para a recarga, que demora até seis horas. Ninguém comprará um carro com tão baixa autonomia e que ainda por cima leva tanto tempo para ser reabastecido. Façamos de conta, então, que, em vez de abastecer, o consumidor opte por trocar a bateria, em um local similar ao posto de gasolina. Seria preciso padronizar as baterias de todos os automóveis de todas as montadoras. O custo de criação dessa realidade seria enorme. Levamos décadas para desenvolver uma infraestrutura para os veículos movidos a combustão. Imagine recomeçar do zero. Isso não significa, contudo, que temos de descartar essa ideia por completo, apenas tocá-la em paralelo.
Uma coisa não exclui a outra. Apoio campanhas que estimulem o transporte público. Para aqueles que moram a 1 quilômetro de distância do trabalho, a bicicleta é uma opção excelente. Caso contrário, torna-se impraticável. Algumas dessas campanhas simplesmente não são realistas. Elas só têm eficácia quando provam, com bons argumentos, que o uso do carro é inteiramente dispensável. Mas isso não elimina a vontade de possuí-lo. Construir um bom sistema metroviário, por exemplo, não acaba com o automóvel. Quero dizer que o passageiro do metrô ainda terá seu carro na garagem, apenas tenderá a usá-lo com frequência menor.
Mexendo no bolso do motorista. Nisso o governo tem um papel preponderante. Não cabe às autoridades determinar quais veículos devemos ou não comprar, mas, sim, criar leis restritivas e punir exemplarmente seus infratores. Não há escapatória, por mais duro que isso possa parecer. O dinheiro regula a demanda e modifica os costumes. Com essas medidas, as montadoras também são pressionadas a se adaptar a esse novo contexto. Assim, logo o consumidor terá a oportunidade de comprar um veículo mais eficiente e se sentirá socialmente responsável ao adquiri-lo.
Dos sistemas de inteligência. A utilização da eletrônica e de computadores será revolucionária. Os veículos serão dotados de inteligência artificial. Serão guiados por sistemas informatizados, tornando-se mais seguros. Como os carros passarão a responder automaticamente a qualquer sinal de ameaça, poderemos antever colisões e evitar desastres. Teremos à nossa disposição um veículo mais seguro e facílimo de dirigir. Essas tecnologias já estão sendo testadas e deverão ser introduzidas nas próximas décadas. Com o passar do tempo, o preço desses equipamentos cairá drasticamente e eles estarão presentes em todos os automóveis. Mas, ainda que a tecnologia avance, os carros continuarão queimando combustível. O motor de combustão permanecerá com uma grande fatia do mercado por muito e muito tempo.
Há uma limitação clara imposta ao design, porque é preciso restringir a área de resistência aerodinâmica. Quanto menor o atrito, mais eficiente o veículo. Mas não podemos de jeito nenhum sacrificar o estilo em benefício do aumento da eficiência. O que vende o carro é o design. Portanto, ele tem de ser atraente. Comprar um automóvel representa um investimento alto para a maior parte das pessoas, e a escolha do modelo tem a ver com a personalidade que o dono deseja projetar. Ninguém quer ser visto como feio e ineficiente. Daí a necessidade de conjugar esses dois mundos. Os engenheiros precisam estar em paz com os designers. Essa tarefa não é fácil.
Essa crise expôs a necessidade de uma mudança substancial nos modelos de gestão de nosso negócio. Do lado americano, a General Motors e a Chrysler foram à falência. Do lado europeu, governos tiveram de intervir para ajudar algumas companhias mais combalidas. É uma evidência de que o sistema não foi concebido para aguentar a pressão de uma turbulência dos mercados. Nada disso é bom. O recente recall da Toyota, hoje a maior montadora do globo, é outra prova de que algo está errado. Esses fatos nos revelam que os hábitos do passado poderão ter efeitos devastadores para o setor numa próxima crise. Os fabricantes precisam estar atentos aos seus investimentos. Qualquer erro pode ser fatal. Uma das formas de reduzir os riscos é dividir os custos. Veja o caso da Chrysler (da qual a Fiat detém participação de 20% e controla a gestão). Nossa associação foi concebida para dividir o ônus sem sobrepor tarefas. Isso faz parte do maior desafio das montadoras, que é atuar globalmente e com custos cada vez mais competitivos. Por essa razão, acredito que o mercado será controlado apenas por cinco fabricantes. Estamos falando de um negócio que exige investimentos pesadíssimos e que é arriscado demais.
Quando a Chrysler pediu concordata, em abril do ano passado, havia menos dinheiro em caixa do que agora. Não quero subestimar nossos esforços, tampouco afirmar que venderemos carros num estalar de dedos. Mas acredito que haja espaço suficiente no mercado americano para reerguer as marcas da Chrysler (Chrysler, Jeep, Dodge e Ram). Como parte desse acordo, aproveitaremos os canais de distribuição da montadora para escoar a produção da Fiat nas Américas. Nossa estratégia é muito clara. Não queremos tomar conta do mercado americano, apenas ter uma parte suficiente dele para ser uma empresa significativa e assim crescer e sobreviver. É uma ambição relativamente simples, imagino.
Porque a oportunidade (a concordata da Chrysler) ocorreu somente no ano passado. O tempo é crucial para tudo na vida. Uma companhia tem de estar preparada para uma mudança nas circunstân-- cias a qualquer momento. Quando o mercado entrou em colapso, percebemos uma brecha para atuar no setor automotivo americano, o que só se tornou possível com o apoio do governo dos Estados Unidos e dos funcionários da Chrysler. A partir de agora, precisamos ser capazes de tomar a dianteira e firmar o maior número de acordos possível, como os que temos feito na Rússia e no México. Acreditamos que a Chrysler voltará a ser uma das maiores do setor.
O uso do termo "global" se banalizou. É repetido em demasia por CEOs do mundo inteiro apenas para eles se sentirem bem consigo mesmos. Para mim, essa palavra significa sentir-se tão adaptável em um país quanto em outro. Há poucas pessoas que têm essa sensibilidade. Quando venho ao Brasil, sinto-me tão brasileiro quanto qualquer um daqui, ainda que não fale a língua nem compartilhe das tradições locais. No fim das contas, ser global significa entender a globalização, mas, ao mesmo tempo, respeitar os mercados onde se atua. Fracassamos nas duas vezes em que tentamos entrar na China, mas continuamos buscando acertar e já temos um novo parceiro. Sei que estamos atrasados - e me arrependo disso -, mas, pelo menos, aprendemos com os erros. Se já tivéssemos iniciado nossas operações na China, tenho certeza de que as perdas registradas por nós na Europa teriam sido compensadas pelos resultados produzidos no Oriente.
Alguns poucos países merecem nossa atenção de modo especial. O Brasil é um deles. Aqui somos líderes em vendas. O brasileiro é nosso mercado mais importante, depois do italiano. Precisamos encontrar uma solução que permita à Chrysler beneficiar-se por completo de nossas estruturas na América Latina. Ainda estamos decidindo se os carros da Chrysler, possivelmente da marca Jeep, serão vendidos em nossa rede de concessionárias. As perspectivas são otimistas. Depois de provocar temores por tantos anos nos investidores, o Brasil está se tornando exatamente o oposto do que era. Está se firmando como uma economia confiável, estável e de excelente desempenho. Além disso, produz etanol, uma alternativa à gasolina. A tecnologia ainda carece de eficiência, mas tem seu papel como fonte de energia limpa. O Brasil é a nossa segunda casa.