De papel passado em cartório
Esse recurso começou a ser utilizado por volta de dez anos atrás, primeiramente em uns poucos cartórios de São Paulo. Em 2003, como ainda era difícil encontrar cartórios que aceitassem fazer a escritura de união estável, a Associação da Parada do Orgulho GLBT de São Paulo criou um documento alternativo, chamado de declaração de convivência homoafetiva. Em lugar de ser feito pelo escrivão, ele é apenas registrado em cartório. A entidade registrou a união de 240 casais gays, muitos deles vindos de outros estados. Os termos dos dois documentos são similares, mas a escritura de união estável tem a vantagem de ser amparada pela Constituição e pelo Código Civil, ainda que a união entre homossexuais não esteja prevista em nenhum deles. Cabe a cada tabelião decidir se aceita ou não elaborar o documento de união entre gays. Muitos se recusam a fazê-lo, alegando que vai contra os bons costumes. É possível que um juiz, ao avaliar um pedido de separação do casal ou questões relativas a direitos sucessórios, se recuse a reconhecer a validade da escritura de união estável assinada por gays e lésbicas. "Se o documento assinado pelas duas partes não ferir as leis do país, é pouco provável que ele seja invalidado por algum juiz", explica o advogado carioca Marcos Campuzano. Um exemplo de ação contrária às leis seria colocar na escritura a guarda de um filho sob responsabilidade do parceiro. Diz a legislação que, na ausência dos pais, a guarda de uma criança deve ser entregue preferencialmente à família biológica. No ano passado, o paulistano Everton Schultz Ramos, relações-públicas de 32 anos, decidiu trocar de emprego. Para isso, precisava ter certeza de que seu parceiro, o engenheiro Eden Lira Branco, de 30 anos, teria capacidade financeira para manter o casal. "Já pensávamos em morar juntos e dividir as contas. O fato de colocá-lo como dependente do meu plano de saúde foi determinante para isso", afirma Eden. "Conhecemos vários casais que, em situações parecidas com a nossa, não puderam compartilhar o plano de saúde porque não haviam assinado a escritura", diz Everton. Muitos casais homossexuais aproveitam a união no papel para celebrá-la como se fosse um casamento. A paulistana Carla Uua, de 32 anos, uniu-se à parceira Carolina Passos, de 23 anos, em agosto do ano passado. Dois meses depois, elas convidaram os amigos para uma celebração num bufê. "Queríamos muito compartilhar nossa felicidade com os amigos e a família", diz Carla. "Fizemos tudo como manda o figurino, só não dividimos o mesmo sobrenome", ela completa.Apesar de o casamento gay não estar na lei, casais homossexuais
recorrem à escritura de união estável para oficializar a relação
Carolina RomaniniFotos Fabiano Accorsi Em busca da oportunidade
Eden e Everton: novos projetos profissionais com a inclusão do parceiro no plano de saúde
O casamento entre pessoas do mesmo sexo não é permitido no Brasil. Pelo menos não com esse nome. Na prática, casais homossexuais que vivem juntos podem ter sua condição reconhecida sob o ponto de vista legal. Muitos cartórios do país já aceitam o registro, por parte de casais homossexuais, de um documento chamado escritura de união estável. Usado originalmente para casais heterossexuais que querem legalizar uma vida em comum mas não desejam um casamento formal, o documento permite que eles compartilhem patrimônios e benefícios, como plano de saúde e seguro de vida. Não há estatísticas sobre o número de escrituras de união estável celebradas entre homossexuais no Brasil, mas apenas um cartório de São Paulo, o 26º tabelionato, registrou no ano passado 202 delas – quatro a menos do que as escrituras lavradas para casais formados por homens e mulheres.O fator afetivo
Carla e Carolina: "Queríamos muito compartilhar nossa felicidade com os amigos e a família"
Antes de descobrirem a escritura de união estável, os casais homossexuais recorriam a contratos escritos com a ajuda de advogados para garantir o compartilhamento do patrimônio comum. Embora a atual escritura seja bastante parecida com os antigos contratos, advogados e juízes asseguram que a união estável tem maior credibilidade legal. "Na prática, a diferença entre a escritura de união estável e a certidão de casamento é desprezível", afirma a advogada Sylvia Mendonça do Amaral, especializada em assuntos homoafetivos. Para muitos homossexuais, o reconhecimento legal de uma união estável é também significativo do ponto de vista afetivo. "É preciso entender que os gays e as lésbicas não querem entrar na igreja e fazer cerimônia, ainda que esse devesse ser um direito nosso. Antes disso, buscamos o direito de poder falar pelo nosso companheiro", diz Alexandre Santos, presidente da Associação da Parada do Orgulho GLBT de São Paulo.